31.12.08

2006 /2008

Mas o que foi este psicodrama, ó Mexia? Como dizia o outro: follow me. Todos temos um punhado de experiências que modificam as nossas vidas para sempre, certo? Certo. Esta foi uma delas, e aconteceu que eu tinha um blogue e me apeteceu escrever sobre isso. Ser o sismógrafo de mim próprio, num período violento e perigoso. É que se há episódios que afectam bocados da nossa vida, este afectou todos: foi um acontecimento, como diz o Badiou ou o que é. Há um antes e um depois de 2006, uma pessoa diferente em termos estéticos, psicológicos, políticos, morais, filosóficos, sexuais, científicos, estilísticos, temperamentais, emotivos, sociais e mesmo religiosos. Foi como o trivium e o quadrivium medievais: um curso intensivo sobre tudo. Ela supõe que tomou uma questionável decisão de gosto (não tomou: o gosto dela é irrepreensível), quando na verdade tomou uma decisão ética colossal. Bem sei que vivemos em tempos em que não nos tocamos senão no sentido carnal, em que somos pós dos modernos e tudo é fungível e esquecível em dois minutos. Lamento mas eu sou enxertado de oitocentista (já tinham reparado), acho que aquilo que fazemos fica connosco e também afecta os outros. E às vezes destrói-nos e nós e destrói os outros. Tinha um blogue e dei conta disso, em directo e sem rede, como quem vê um papel no fogo a encarquilhar-se, a ficar negro, a ser desfeito pelas chamas, primeiro as pontas queimadas, depois uns riscos alaranjados que despontam na outra extremidade após um fogacho, depois uma confluência de fogos algures a meio, onde o papel já é uma bola carbonizada, cinza frágil ao toque. Eis o que vistes, e não foi bonito, alguém que fez dois bonecos vudu e foi espetando um e outro como entretém para os convidados, mas gostava que tivesse ficado mais alguma coisa, um homem que como no poema de Yeats «knows all the cost» porque «he gave all his heart and lost». Perdi, perdi em grande, e agradeço a todos aqueles que por bons ou maus motivos foram espreitando a minha derrota.

Diário de um mau ano

«(...) there was something personal going on, something to do with age and regret and the tears of things. Which she did not particularly like, did not want to evoke, though it was a tribute to her (...)».

J.M. Coetzee, Diary of a Bad Year (2007)

Uma rede de enguias

A Chincha é uma rede com o comprimento aproximado de 32 braças (cada braça ronda 1,5 m) dividida em 2 partes iguais, levando ao meio um saco com 5 braças, sendo a malha mais apertada no final. Em todo o comprimento da rede leva em ambos os lados uma corda (tralha). No lado de fora é colocada a cortiça (ou bóias), para manter a rede à tona da água, e no de dentro é posto chumbo (ou bolos de barro), para que a rede chegue ao fundo do rio. Em ambas as pontas tem o calão (pequeno pau de madeira) do qual saem as cordas. Entre o calão (0,5 braça) e o saco, a rede vai alargando para as 2,5 braças. Para que a rede se mantenha o mais coordenada possível, são utilizadas bóias bem mais visíveis sobre o saco que se mantêm sempre fora de água. As cordas têm também uma marca que especialmente à noite é um auxiliar importante.

[do site Ovar Virtual]




I have sat and listened to too many
words of the collaborating muse,
and plotted perhaps too freely with my life,
not avoiding injury to others,
not avoiding injury to myself--
to ask compassion . . . this book, half fiction,
an eelnet made by man for the eel fighting


(excerto de «Dolphin», de Robert Lowell, da colectânea The Dolphin, 1973)

Sono e tempestade

Li uma lúcida entrevista ao centenário Elliott Carter e comprei um disco dele, porque nunca tinha ouvido nada. Uma vez que o idioma musical vanguardista me é desconhecido, escolhi território conhecido: os poemas de Robert Lowell, que Carter adaptou em In Sleep, In Thunder (1981), seis canções para tenor e catorze instrumentos. Os poemas de Lowell, sobre crises pessoais e crises de fé, são maravilhosos, no seu formalismo heterodoxo e nas constantes guinadas de tom. Carter escreveu que apreciava naqueles textos «as mudanças rápidas e controladas, da paixão para a ternura, do humor para o sentimento de perda». A volatilidade dos versos de Lowell (espelho da sua depressão) serve a Carter como exercício mozartiano de contradições. Os poemas (e as canções) são paródicos, pastorais, mas também tresloucados e violentos, como nesse «Dies Irae» que dá o mote apocalíptico ao conjunto (é Deus que fala connosco «in sleep, in thunder»). Tanto nos poemas amorosos como nos poemas religiosos, a irrequietude sofisticada e sofrida de Lowell era um desafio, mas Elliott Carter pegou nesses poemas e compôs canções sofridas, irrequietas e sofisticadas. Homenageou assim o seu amigo Robert Lowell como só um amigo consegue.

30.12.08

À cidade e ao mundo

De todas as alocuções de fim de ano (presidente, primeiro-ministro, cardeal patriarca) aquela de que mais gostei foi a de Cláudia Vieira, difundida à cidade e ao mundo via Diário de Notícias. E não gostei apenas porque gostaria de Cláudia Vieira mesmo a ler a lista telefónica (gostaria), mas porque a entrevista confirmou tudo o que eu tenho defendido, contra os seus detractores cegos e estúpidos. Comecemos por isto: Cláudia é uma mulher. Quanto o entrevistador diz que ela nasceu em 1979, ela corrige e anuncia que nasceu em 1978. Não há muitas mulheres que corrijam a sua idade para mais, especialmente na fronteira entre décadas. Cláudia tem pois 30, a caminho dos 31, não é uma meninoca qualquer, como uma rapariguelha com quem tentam que ela se confronte, uma rita que não é de cássia e tem uma mamas impositivas. Nada é impositivo em Claúdia, tudo é seguro como a Lianor de Camões pela verdura. Parece que ela ficou «surpreendida» com uma entrevista tão extensa e com tanto destaque num jornal generalista, mas isso é a tranquila modéstia dos grandes. Porque Cláudia está à vontade, do princípio ao fim. Aliás, toda a entrevista é sobre «estar à vontade»: estar à vontade com a celebridade, estar à vontade com a exposição, estar à vontade com os cartazes em lingerie e estar à vontade com as cenas de nudez. A resposta a todas estas dúvidas é simples: Cláudia Vieira está à vontade. Sente-se bem consigo mesma, resguarda a vida privada na medida do possível, gosta de se ver nos cartazes, quis cenas de nudez a contraluz, diz sobre as fotos da GQ «as mais ousadas é que estavam melhores» (um juízo estético como código moral), não ponderou ainda possíveis convites da Playboy portuguesa e quanto aos mupis garante: «é tudo verdade» (i.e. sem Photoshop, mas deixem que veja aqui um aforismo mais elevado). Ela tornou-se conhecida como estrela de novelas, mas agora está nas mentes de todos os homens (excepto os cegos e estúpidos) por causa da Triumph. Quanto a esse assunto, é pragmática: à conta do anúncio, a marca abriu mais lojas e ela, Cláudia, tornou-se mais conhecida e foi eleita a «nona mulher mais bonita do mundo». As feministas degradam as mulheres como sendo «objectificadas» pela nossa sociedade. Mas elas são sujeitos, às vezes sujeitos negociais, e neste caso foi um negócio proveitoso para ambas as partes. Habituem-se. E a «pressão?», pergunta o jornalista. Ela está (já sabem) à vontade com isso, e afasta facilmente propostas indecentes. Aquilo que a surpreende é que faça agora parte do «imaginário» de homens que já a conheciam e que ela não pensava que lhe ligassem nenhuma. A explicação é evidente, tão evidente como a avidez dos cartazes, e que eu aliás já decifrei nos cartazes: Claúdia é uma mulher simples, descontraída, natural, aquilo a que eu chamei, numa expressão contestada, uma rapariga portuguesa. Não há lascívia na persona pública de Cláudia, como se vê quando ela refere a «pele sensível» (é por isso que cora tão facilmente), a tez morena, quando aponta para o peito e diz que desconhece as suas medidas (86-64-94) ou quando confessa que gosta da sua barriga e não gosta das suas mãos (é rara a mulher bonita que gosta das suas mãos, porquê?). Se ela está tão à vontade é porque já foi uma rapariga como as outras, meio «patinho feio» e tudo, muito alta para a sua idade e desportista, até um surfista lhe deu tampa (um surfista cego e estúpido). Depois (aos 17) é que começou a entrar naquelas «avaliações da rapariga mais bonita da escola» (e diz «avaliações» com a mesma tranquilidade com que admite que é bonita). Agora, reconhece que tem outro «estatuto» (o de símbolo sexual), com o qual se sente (mais uma vez) à vontade, e que luta por outro «patamar» como actriz. Sendo actriz de televisão, passa por cima das tricas televisivas nacionais e anuncia o seu interesse em novelas da Globo. É o começo da internacionalização, que também passa pelo cinema. As estreias com CV que aí vêm são fraquinhas, mas o que ela gostava era de trabalhar com cineastas propriamente ditos, filmar com Woody Allen por exemplo: «Pode ser que ele leia esta entrevista» (que doçura). Ela vai entretanto debutar em teatro (Paulo Matos, que a Força esteja contigo), e anda ansiosa, com a barriga às voltas (e nós visualizamos voltas na barriga na Cláudia Vieira). Mas é medo passageiro, porque ela triunfa sempre (viram o trocadilho?). Se Cláudia está tão à vontade com o mundo é porque tem uma relação estável com o mundo, o que também passa por um namoro estável (gosto quando ela refere o namorado com nome e apelido). Aos 30 (não 29), Cláudia ouve o relógio e quer ser mãe um dia destes, até porque aprecia a vida em família. É isso que ela quer da vida, e não necessariamente grandes paixões, que as paixões são inimigas de estabilidade: «Isso dos grandes amores tem dias», e nem La Rochefoucauld o disse mais bem dito. Em todo o caso, em casa, no teatro e no mundo, ela acha que é tempo de mudança. Ela, que é «de centro», assegura que não defende «a mudança pela mudança» (é de centro-direita, vá). Mas uma coisa é certa, ao contrário das meninocas empinadas e esparvoadas, Cláudia não será um epifenómeno, pelo menos se tiver juizinho, e esta rapariga tem mais juizinho que trinta juízes do Supremo. Deus a vigie e proteja, são os meus votos à cidade e ao mundo. Ide, e que ela vos acompanhe. Ámen.

Vá para fora cá dentro

Será que a blogosfera está «cada vez pior», como pretende (e é isso mesmo: pretende) Pacheco Pereira? É evidente que a blogosfera foi uma novidade e um fenómeno em 2003, e que depois disso cresceu muito para além do pequeno grupo inicial, instalou-se nos nossos hábitos e, digamos, estabilizou. O seu crescimento desmesurado faz com que hoje seja bastante difícil dizer generalidades sobre «a blogosfera». Embora Pacheco Pereira tenha já dito que «lê tudo», é objectivamente impossível ler todos os blogues portugueses em actividade, e todos conhecemos um punhado de blogues bons mas obscuros, geralmente porque não são cooptados por ninguém. Haverá sem exagero uma centena blogues que vale a pena ler de vez em quando. Desses cem, há uns trinta com os quais tenho mais afinidades, e são esses que estão na minha lista de links, mas às vezes visito outros, sobretudo quando alguém me chama a atenção para um texto específico. É verdade que os blogues «conhecidos» estacionaram, e que a blogosfera não anda muito «excitante», mas não se vê em que sentido é que está «cada vez pior».

O que acontece é que Pacheco Pereira só está atento à blogosfera «pública», aquela que se dedica a escrever sobre o «LÁ FORA» (sic). Por isso é que Pacheco diz, e tem razão: « [a blogosfera] Ganhou todos os defeitos do jornalismo, quer os públicos, quer os de bastidores (…) e nenhuma das qualidades. (…) Está a tornar-se numa colecção de dichotes, pseudopiadas, ajuste de contas, e "bocas" que passam por ser opiniões. No geral é tudo muito mau, mesmo muito mau. (…) Pelas mesmas razões e com os mesmos personagens (na maioria jornalistas) a blogosfera politizou-se no pior sentido, de forma obscura e pouco transparente». Genericamente isto é verdade, e o tédio e trivialidade da blogosfera «política» dão razões ao pessimismo de Pacheco. Mas nem só do LÁ FORA vivem os blogues. Pacheco tem aquela velha repugnância marxista pelo registo autobiográfico emotivo, e por isso não liga à blogosfera do CÁ DENTRO, mas a blogosfera do CÁ DENTRO tem gente interessantíssima, culta e de boa prosa.

É evidente que se os desgostos amorosos, o envelhecimento, o luto, a sedução, o medo, a alegria, o tédio, a chacota, a libido, a saudade, a raiva ou as angústias metafísicas não interessam nada, então a blogosfera é de facto pouco interessante. Só que, ao contrário do que diz Pacheco, a blogosfera «pessoal» (que não necessariamente confessional ou intimista)é bem interessante.

Pacheco, que se acha sempre um adulto no meio de adolescentes, repudia os «estados de alma», que considera simples imaturidade ou exibicionismo. O longo convívio com a história do comunismo soviético acentuou nele essa ideia terrível: a de que só têm interesse os problemas colectivos (e sisudos), ao passo que as preocupações individuais são umbiguismo estéril. Triste jdanovismo este, vindo de um homem que preza a liberdade.

Wow



No final duma fabulosa versão de «Master and Everyone» (última faixa do álbum ao vivo Is It The Sea?) há um silêncio e um homem diz «wow» antes de a casa vir abaixo. Eu também aplaudia, se lá estivesse, mas não há nada como aquele «wow», aquele espanto que é ao mesmo tempo elogio e gratidão.

O caderno inglês



O melhor de 2008 estava também no meu caderno inglês, que perdi num táxi, em Lisboa, anotações precisas (e agora imprecisas) da minha última estada londrina. Uma semana sozinho e à chuva e no No Man's Land de Pinter com um Michael Gambon portentoso, na apertada Rough Trade a comprar discos dos Magazine e dos Josef K, na sala do santo divã freudiano em Maresfield Gardens, na Waterstone's de Piccadilly sentado no meio da poesia, nos cinemas e esplanadas de Leicester Square, num teatrinho de bairro em Hampstead ao domingo, numa exposição Bacon com os recortes do estúdio dele (toureiros esventrados, estudos de Muybridge, acidentes de automóvel), na London Review Bookshopo que é a minha ideia de civilização, no Ivanov na versão de Stoppard com as suas cenas de festa e tragédia, no Rothko da fase negra que torna variado e metafísico o negrume total, no tributo a Nico com Cale & amigos. (Peter Murphy imponente, Mark Lanegan cavernoso, a ladina Eleanor Friedberger, os berros de James Dean Bradfield, o cowboy renitente Mark Linkous), na misoginia divertida e dolorosa dos Credores de Strindberg, na minha colecção Bresson completada com Le Diable Probablement, tudo isto e mais, a minha quarta ida a Londres em dois anos, desde que o Pedro me abanou duma tristeza profunda em 2006 com um simples bilhete de avião, Londres como gesto de amizade, Londres como oxigénio na minha fase de dióxido de carbono, num mundo tão triste mas menos exaltante que Strindberg, Nico ou uma tela negra e ainda mais negra de Rothko.

Hetero-autobiografia aos 36

1. Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.

2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (...). Não quero discutir os motivos da tua generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar: "você não tem o direito de fazer isso". Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.

3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer proselitismo.

4. (...) É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar.

5. (...) Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir gentes maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "gentes maravilhosas", não gosto de gente, para abreviar minhas preferências. (...)

12. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro. (...)


(«O ventre seco», de Raduan Nassar, do magnífico livro de contos Menina a Caminho, 1997, edição portuguesa da Cotovia)

Sweet about me

Acordo com aquela canção em que uma menina repete no refrão «nothing sweet about me», mas não adianta, mesmo que o demónio tome a forma de telefonia matinal não adianta, acabou-se, sweet ou nothing sweet acabou-se, nem todas as meninas são doces, que espécie de idiota imagina tal coisa?, e onde não há ternura não há obrigações, cada um vai à sua vida, já foi, tenho pena que fique essa memória dela e essa experiência de mim, um «nothing sweet» mútuo e em fases, a dela calculista e a minha quase criminosa, mas paciência, o demónio que não me tente que eu já lhe dei suficientes agrados, que ele vá à sua vida, como ela e eu, porque é preciso renunciar à tentação da tristeza e depois à tentação da amargura, e então quem é derrotado é o próprio demónio que, quem sabe, talvez um dia se torne dócil.

A alma do negócio

Com Marx, Darwin, Nietzsche e Freud aprendemos a suspeita. Quando se conhece uma menina marxista, darwinista, nietzschiana e freudiana, é lição para toda a vida. A desconfiança é a alma do negócio, e tudo isto é basicamente um negócio. Vem no Marx, filha. E no Darwin, no Nietzsche e no Darwin.

Revisão da matéria dada 4: Freud



Com Freud aprendemos que a linguagem obscurece as intenções, e que a pulsão sexual é mais lúcida que a conveniência social.

Revisão da matéria dada 3: Nietzsche



Com Nietzsche aprendemos que a piedade é um vício dos fracos, e que não há aristocracia sem desprezo.

Revisão da matéria dada 2: Darwin



Com Darwin aprendemos que o mundo é dos fortes que não se envergonham dos seus penachos, e que a natureza tem lógica mas não tem sentimentos.

Revisão da matéria dada 1: Marx



Com Marx aprendemos que as classes sociais são uma hierarquia cooptada e que a diferença de classe imaginária é tão motivo de exclusão como a diferença real.

29.12.08

2008 numa canção



Around your crooked conscience she will wind
And it's a lot to ask her not to sting
And give her less than everything
Innocence and arrogance entwined


[The Last Shadow Puppets. «My Mistakes Were Made for You»]

Os piores de 2008

Não li livros estrangeiros maus, porque escolho com cuidado, mas claro que li ou passei os olhos por dezenas de romances portugueses de caca. O livro que mais me desgostou foi a correspondência Régio/Nemésio, que naquelas páginas não passam de um melindroso e de um petulante metidos nas tricas literárias mais lamentáveis. Nos discos, os barretes do ano foram os álbuns de Elbow e Bon Iver (que estão em vários best of das revistas especializadas). No cinema, mon coeur balance entre Autópsia de um Crime (para quê um remake?), As Duas Faces da Lei, O Estado Mais Quente e Obsessão Mortal, mas provavelmente foi este último.

Frases do ano

«Vayanse al carajo yankees de mierda», do presidente venezuelano Hugo Chávez.
Porque é a tradução em demótico da prosa entediante dos intelectuais «diplomatiques».

«De manhã só é bom é na caminha», do atleta olímpico Marco Fortes em plenos Jogos Olímpicos.
Porque gosto de frases sensatas em timings insensatos.

Acontecimentos do ano (além da crise)

NEGATIVOS
No plano nacional, três leis negativas: a lei do divórcio, o Acordo Ortográfico e a lei do tabaco.

O Governo quis acabar com a ideia de culpa e com a burocracia, mas contribui para a erosão do conceito de responsabilidade e imagina casais divorciados civilizadíssimos, enquanto os casais reais vão atafulhar os tribunais com infindáveis questões monetárias e de custódia dos filhos.

O Governo quis afirmar o Português como idioma forte e unificado, mas este Acordo tem um vício gravíssimo em termos de filosofia da língua: dispensa a etimologia em favor da fonética, depreciando ainda mais a norma escrita que é o esteio duma cultura.

O Governo quis alertar para os perigos do tabaco e zelar pela saúde pública, mas contribuiu para o puritanismo da saúde que se sucede civilizacionalmente ao puritanismo sexual, e que herda daquele o carácter intolerante e persecutório.

POSITIVOS
A revista inglesa Standpoint
Fidel já de fato de treino
O Não dos irlandeses ao Tratado de Lisboa
O concerto de Leonard Cohen em Lisboa
A presidência europeia de Sarkozy
A «distensão» que se segue à eleição de Obama
A elevação intelectual de Bento XVI
A rainha da Jordânia

Escusado será dizer que o melhor

23.12.08

Vou ali ouvir uns disquinhos para completar a lista e já volto.
Jingle bells e, coiso, para todos.

Campeão de Inverno

Não é só no futebol: seja como for que isto acabe, pelo menos por agora sou campeão de Inverno.

Depois do fim do tempo

No Quatuor de Messiaen não é tanto a vivacidade imprevisível do clarinete que me impressiona (um clarinete que é pássaro e anjo), mas sobretudo os louvores lentíssimos do quinto e oitavo andamentos, Louange à l’Éternité de Jésus (violoncelo) e Louange à l’Immortalité de Jésus (violino). Talvez porque Messiaen consiga transformar o sofrimento em alegria, e isso só se consiga com o tempo, ou depois do fim do tempo.

22.12.08

Exit ghost

Há umas semanas participei num debate sobre a publicação do romance póstumo de Nabokov The Original of Laura. A história desse inédito dava ela mesma um romance de Nabokov: ordens enfáticas para a sua destruição no próprio manuscrito, a viúva que não cumpriu, o original fechado num banco suíço, a morte da viúva, as indecisões e contradições do filho, a tomada de posição pública de escritores pró e contra, a espreitadela dos biógrafos autorizados, a ideia de que este romance apresenta uma espécie de Lolita crescida, o «fantasma» (sic) de Nabokov que aparece ao filho autorizando o projecto e enfim a edição em livro.

Com fantasma ou sem fantasma, parece um caso de «testamentos traídos». No ensaio sobre Kafka publicado em Les Testaments trahis (1993), Kundera escreve que foi Max Brod quem inventou Kafka e a «kafkologia». Não se trata apenas de ter publicado os inéditos, mas também de através de biografias, ensaios e prefácios ter construído uma determinada imagem de Kafka: um Kafka religioso e puritano, um São Kafka.

Na verdade, tudo começou num jogo em que Max e Franz, ainda jovenzinhos, prometeram queimar os escritos um do outro. Mais tarde, Brod veio dizer que nem Kafka fez o pedido a sério, nem ele, Brod, o aceitou a sério. E assim se passou da destruição total à publicação total. Kundera reconhece o mérito que Brod teve na edição dos textos ficcionais, mas publicar os textos pessoais foi um caso claro de «testamentos traídos», por mais que a sua destruição nos privasse do Diário e da Carta ao Pai. É uma tese duvidosa, mas eticamente honesta.

Nestas matérias tem de haver um equilíbrio entre a sensatez e o respeito pela vontade explícita ou presumida do autor. Nem tudo o que é lícito é legítimo. A não ser que alguém tenha comunicação directa com o fantasma.

Yale



KELLY: Listen, let’s all go out for a drink sometime.

JOHN: Yeah.

KELLY: Yeah? You know? Call me, OK?

JOHN: Yeah, OK.

KELLY: All right. Listen, I’m under «Evelyn Waugh».

JOHN: Oh, oh, oh.

KELLY: Shhh. OK?

JOHN: Yeah.

KELLY: OK. Arigatou, arigatou.

JOHN: Moshi moshi.

CHARLOTTE: Evelyn Waugh?

JOHN: What?

CHARLOTTE: Evelyn Waugh was a man.

JOHN: Oh, c’mon, she’s nice. What? You know, not everybody went to Yale.


(Anna Faris, Giovanni Ribisi e Scarlett Johansson em Lost in Translation, 2003, escrito e realizado por Sofia Coppola)

A idade de Hooper

Year by year, generation after generation, they enriched and extended, year by year the great harvest of timber in the park grew to ripeness; until, in sudden frost, came the age of Hooper; the place was desolate and the work all brought to nothing (…).

Brideshead revisited

A versão para cinema de Brideshead Revisited foi vilipendiada por toda a gente, e eu sou o primeiro a concordar que era fraquinha; mas a minha relação emocional com o romance de Waugh faz-me ter uma simpatia irremediável mesmo por este fracasso. Brideshead (o filme) tinha que competir com Brideshead (a série), e isso nunca na vida poderia fazer bem. A alternativa foi apostar tudo numa adaptação fiel, explicitando apenas a componente homossexual e comprimindo algumas cenas (o interlúdio veneziano é muito chocho). Em termos de «valores de produção» tudo certinho, tudo BBC: palácio e vestidos e Oxford e o mais. O problema está nos actores e na concepção, digamos, «ideológica». Matthew Goode é demasiado «good», um rapaz entre o deslumbramento e melancolia, mas sem verdadeira densidade. Hayley Atwell representa bem o lado coquette e as restrições religiosas, mas não é uma figura verdadeiramente interessante e ainda menos uma aristocrata. Emma Thompson é uma Lady Marchmain severa e antipática, mas em nenhum momento dá a entender a dimensão trágica da religião. Brideshead Revisited (o romance) pode ser lido de muitas maneiras, mas tem de passar forçosamente pela ideia de uma crença religiosa que não é apenas «castradora» mas também vivida como moralmente imperativa. Se as questões do pecado, do divórcio e da fé são um disparate, Brideshead é um disparate. E claro que para uma audiência moderna, as questões religiosas são disparatadas. É preciso empatia para sentir o drama em torno da morte de Lord Marchmain, e tudo o que se joga nele aceitar ou não a extrema-unção. No romance, Charles faz de incréu (quase até ao fim), revoltado com os códigos que não entende e não aceita. Mas Evelyn Waugh, um convertido, percebe que são esses códigos que dão sentido àquelas vidas e sobretudo àqueles aristocratas historicamente condenados. A ideia de decadência e de fim é essencial em Brideshead, e tem a sua figuração farsesca em Hooper, o soldado bronco que representa os «novos tempos». Mas Hooper só funciona se for dado em contraponto. Quando Hooper parece sensato, então Waugh tinha razão mas o romance torna-se ilegível.

Bem f

Ele conta-me que uma mulher lhe disse: «eu gosto de ser bem fodida». Não sei se foi um statement, um clin d'oeil, um caveat ou qualquer outra coisa em estrangeiro. Sei que ele ficou como ficam os homens quando as mulheres usam linguagem reles: surpreendido, chocado e excitado. É verdade que, tirante o vocábulo, ela não disse nada do outro mundo. Toda a gente gosta de foder ou ser fodida, de preferência bem. A falta de manutenção ou o serviço deficiente já não são tolerados, especialmente pelas mulheres, que antes tinham de suportar o que lhes calhasse em azar. Hoje em dia uma mulher perdoa tudo a um homem, até violências e traições, mas não perdoa ser mal fodida. Abençoadas.

In memoriam

Entre os mortos do ano, alguns que me diziam mais respeito: Dinis Machado, Joel Serrão, Luiz Pacheco, Maria Gabriela Llansol, Alain Robbe-Grillet, Albert Cossery, Angel Gonzalez, David Foster Wallace, Harold Pinter, Hugo Claus, Simon Gray, William Buckley, Bernard Crick, Samuel Huntington, Conor Cruise O’Brien. E no cinema, Richard Widmark.

[actualizado]

21.12.08

E Deus criou

Como já escrevi noutra ocasião: «(...) não é segredo que no cinema a beleza feminina sempre foi motivo de grande atracção. No ensaio La cinéphilie: invention d’un regard, histoire d’une culture (2005), o crítico francês Antoine de Baecque reconhece esse facto, e acumula exemplos de como mesmo os intelectuais se exaltavam com as mulheres na tela. Há textos dos canónicos Cahiers du Cinéma que são mais inventários da anatomia feminina que análise fílmica».

Inventários de anatomia não farei, mas aqui fica um inventário de nomes de mulheres em celulóide, no ano da Graça 2008.

Das jovenzinhas, duas das mulheres mais bonitas do mundo, as inevitáveis Natalie Portman e Keira Knightely (ai aquele vestido verde em Atonement). Nunca tinha dado grande atenção a Anne Hathaway e agora dou. Emily Blunt de roupa interior (Charlie Wilson’s War) foi um baque maior do que a invasão de Geórgia. Bond não dormiu com a espantosa Olga Kurylenko, mas dormimos nós. Duas invenções de Woody Allen brilharam: Romola Garai e Hayley Atwell. Mila Kunis, namorada do rapazinho do Home Alone, fez uma havaiana de cair para o lado em Forgetting Sarah Marshall, e a minha beta do ano foi Sarah Wright (The House Bunny). Clémence Poésy (In Bruges) e Mélanie Laurent (Paris) são as mulheres mais belas em filmes com nomes de cidades. E houve também a italianinha Diana Fleri e uma miúda underage, Louise Grinberg (Entre les murs).

Mas este foi um ano excepcional para as moças da minha faixa etária, na categoria flawless (Charlize Theron, Jennifer Connelly, Jennifer Garner, Rachel Weisz), no género «vamos lá jogar Trivial Pursuit a noite toda» (a sardenta Alice Witt, uma Carla Gugino em fogo, a cutchi cutchi Michelle Monaghan , e as mulheres adultas Paula Patton e Radha Mitchell). Eva Mendes teve a cena do ano, com mamilo, Blondie e tudo, mas a nudez de Elena Anaya em Saving Grace merece o título do filme. E não ficaria de bem com o multiculturalismo sem referir a esplendorosa turca Nurgül Yeşilçay, a canadina de origem marroquina Emmanuelle Chriqui e a libanesa Nadine Labaki.

A ternura dos quarenta? Também, mas sobretudo a tesão dos quarenta: Diane Lane continua a mulher madura mais desejável do cinema americano (e mais angustiada também), Naomi Watts em cuecas para Haneke durante meia-hora mostrou como é lindíssimo um corpo de pessoa normal, Julia Ormond reapareceu, tal como Mathilda May, que está um petisco. O mundo andou tão estranho que até a desengraçada Marisa Tomei estava sexy como o raio no último Lumet.

Reunido o júri, as dez finalistas são: Anaya, Blunt, Gugino, Kunis, Kurylenko, Labaki, Laurent, Mendes, Witt e Yeşilçay.

E Deus criou a mulher.

(para o Miguel Marujo investigar e ilustrar)

Os melhores de 2008

Blogues
A causa foi modificada
Cruel vitória
E Deus criou a mulher
Irmão Lúcia
Tame the Kant / Life and Opinions of Offely, Gentleman
Melancómico
Ouriquense
Pastoral portuguesa
Vontade indómita
Voz do deserto

Porque são blogues em que reconheço (mesmo que não conheça) pessoas únicas: o maradona, o Gonçalo, o Miguel, o Pedro, o Nuno, o Rogério, o Pedro e o Tiago. E há um ou uns desconhecidos, mas que suspeito quem são e que de todo o modo também reconheço.


Discos
American Music Club, The Golden Age
Beck, Modern Guilt
Goldfrapp, Seventh Tree
The Kills, Midnight Boom
Lambchop, OH (Ohio)
The Last Shadow Puppets, The Age Of Understatement
Micah P. Hinson, Micah P. Hinson and the Red Empire Orchestra
Nick Cave & and The Bad Seeds, Dig Lazarus, Dig!!!
Silver Jews, Lookout Mountain, Lookout Sea
Vampire Weekend, Vampire Weekend

Em termos musicais, não há decadência americana nenhuma.

Se Sea Change era Beck de coração partido, Modern Guilt é Beck estável e adulto, mas não menos lúcido nem menos inventivo nos arranjos e instrumentação. Gosto sempre dos American Music Club e dos Silver Jews, e embora estes discos deles nem sejam dos melhores, têm quota garantida; o mesmo se diga dos Lambchop, de quem a Pitchfork dizia que são uma banda «altmaniana» (meaning?). Micah P. Hinson deixou felizmente a costela country e gravou um disco quase de outtakes do primeiro álbum, o que é elogio bastante. Da famosa «cena de Brooklyn» só ouvi Vampire Weekend, os putos a imitar o Graceland, e achei, sei lá, o máximo.

Os ingleses andaram fracotes, mas gostei do regresso às paisagens pastorais dos Goldfrapp (depois da fase S&M), dessa grande aliança luso-americana que são os The Kills (rock is not dead, fuckers) e, estranhamente, do rock orquestral e cinematográfico do rapaz Alex Turner (eu que gosto moderadamente do Arctic Monkeys e imoderadamente de Alexa Chung).

Quanto a Nick Cave, continua a viver no Antigo Testamento, e Deus o abençoe.

O último Radiohead saiu mesmo no final de Dezembro, pelo que nem entrou na lista de 2007 nem da de 2008, embora mereça estar nas duas. You Follow Me, de Nina Nastasia (c/ Jim White) também é de 07, mas em 08 foi a BSO do Estado Civil, 'nough said.

À hora de fecho desta edição ainda não ouvi um punhado de discos de que é altissimamente provável que vá gostar (Beach House, Deerhoof, Robert Forster e Shearwater).

Álbum ao vivo: Bonnie «Prince» Billy c/ Harem Scarem and Alex Neilson, Is It the Sea?). Os melhores EP's foram dos dinamarqueses Northern Portrait, a banda mais parecida com Smtihs desde os Gene ou mesmo desde os Smiths. Ah, e há mais uma edição da Bootleg Series de Dylan.

Alguns bons álbuns que não estão no top: Gostei de Fleet Foxes, mais do que qualquer outra banda da nova onda folk, mas continuo a preferir Neutral Milk Hotel (embora «Your Protector» seja uma das canções do ano, entre o medieval e Morricone). O terceiro Portishead é francamente bom, mas tão diferente e tão agreste que acho que só entro nele à décima audição. Quanto a TV On the Radio: é do rock mais moderno que se faz, mas não tenho a mínima adesão emocional.


Filmes

Alexandra, Aleksandr Sokurov
Antes que o Diabo Saiba que Morreste, Sidney Lumet
Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes
Corações, Alain Resnais
Este País Não é Para Velhos, Joel e Ethan Coen
Fome, Steve McQueen
Gomorra, Matteo Garrone
Nós Controlamos a Noite, James Gray
Quatro Noites com Ana, Jerzy Skolimowski
A Ronda da Noite, Peter Greenaway
O Segredo de um Cuscuz, Abdel Kechiche
A Turma, Laurent Cantet

Fiz e refiz os «dez mais» e nunca consegui que fossem dez, por isso paciência, ficam doze. A verdade é que foi um ano especialmente bom para o cinema europeu (9 filmes nesta lista) e especialmente fraco para o americano (apenas 3). Começando por estes últimos, fiquei espantado com o Lumet octogenário e o seu pessimismo implacável; e para pessimismo pessimismo e meio com os Coen numa espécie de sequela a Fargo sobre a ruindade da espécie. Gostei de todos os filmes de Gray, e este talvez nem seja o melhor, mas é difícil que alguém ainda reinvente a ligação entre família e crime como ele fez aqui, com crueza e grande estilo. Vários filmes europeus do ano tinham uma costela documental: Cantet filmou a escola, Kechiche os imigrantes magrebinos, Garrone a Camorra, Gomes a província portuguesa, Sokurov a guerra da Chechénia e McQueen evocou Bobby Sands (aquele que mais me marcou destes todos, pelo impacto visual; e uma estreia fantástica). Resnais continua de boa saúde cinematográfica (tal como Rohmer, que não está na lista), em versão bastante mais humanista do que foi seu hábito noutros tempos. Skolimowski, eureka, regressou, com a história de amour fou mais tocante do ano. E para terminar, o único destes filmes que não vi em mais nenhuma lista: o Rembrant de Greenaway, o único filme do inglês de que gostei desde 1991, entre o tableau vivant, a bruteza sensual e o enigma policial (e uma rima com A Ronda da Noite da Agustina que é uma coincidência fascinante).


Menção especial: o admirável La Question Humaine, 2007, de Nicolas Klotz, que não teve estreia nacional.

[Perdi sete ou oito filmes relevantes, mas creio que desses só um poderia entrar nesta lista: Haverá Sangue].

Na Cinemateca vi várias obras-primas e bastantes curiosidades, mas destaco os grandes filmes que vi pela primeira vez: Il Deserto Rosso (Antonioni), Hangover Square (Brahm), High Planes Drifter (Eastwood), I Shot Jesse James (Fuller), Der Siebente Kontinent (Haneke), I Was a Fugitive from a Chain Gang (LeRoy), Der Verlorene (Lorre), Deux Hommes à Manhattan (Melville), The Bad and the Beautiful (Minnelli), The Killers (Siodmak), Solntse (Sokurov).


Livros

Odes, Horácio
(Cotovia, tradução Pedro Braga Falcão)

A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder
(Assírio & Alvim)

Platónov, Anton Tchékhov
(Campo das Letras, tradução António Pescada)

Primeiro Amor, Ivan Turgueniev
(Relógio D´Água, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra)

Castelos Perigosos, Céline
(Ulisseia, tradução Clara Alvarez)

O Céu É dos Violentos, Flannery O’Connor
(Cavalo de Ferro, tradução Luís Coimbra)

A Derrocada de Baliverna, Dino Buzzati
(Cavalo de Ferro, tradução Margarida Periquito)

Os Detectives Selvagens, Robert Bolaño
(Teorema, tradução Miranda das Neves)

Fome, Knut Hamsun
(Cavalo de Ferro, tradução Liliete Martins)

O Homem sem Qualidades, Robert Musil
(Dom Quixote, tradução João Barrento)

O Jogo do Mundo, Julio Cortázar
(Cavalo de Ferro, tradução Alberto Simões)

Diário de um Mau Ano, J M Coetzee
(Dom Quixote, tradução Teixeira de Aguilar)

Património, Philip Roth
(Dom Quixote, tradução Fernanda Pinto Rodrigues)

Por Que Escrevo, George Orwell
(Antígona, tradução Desidério Murcho)

Sob um Falso Nome, Cristina Campo
(Assírio & Alvim, tradução Armando Silva Carvalho)

Lacrimae Rerum, Slavoj Zizek
(Orfeu Negro, tradução Luís Leitão)

Lisboa – História Física e Moral, José Augusto-França
(Livros Horizonte)

O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria
(Gradiva, tradução Edgar Rocha)

O Poder e os Idealistas, Paul Berman
(Alêtheia, tradução Raquel Vaz Pinto)

A Razão das Nações, Pierre Manent
(Edições 70, tradução Jorge Costa)

Uma lista bastante evidente: Cortázar, Hamsun, Horácio, Musil, Orwell (o ensaísta) e Turgueniev são clássicos tão clássicos que nenhum Harold Bloom os punha de fora. O catolicismo violento de O’Connor está agora integralmente em português; Castelos de Céline é tão bom como os dois romances mais conhecidos (e ainda mais tétrico); Platónov (que vi numa belíssima encenação no Teatro Nacional de São João) é um Tchékhov «imaturo» onde já está tudo o que depois aparece nas peças da maturidade. O Nobel Coetzee e o quase Nobel Roth representam a vitalidade da ficção em língua inglesa. Não conhecia os contos de Buzzati e fiquei, como dizia o outro, maravilhado. O grande Bolaño já tinha sido editado em Portugal, mas esta é a sua primeira obra-prima a aparecer aqui, uma interessante companion piece para Rayuela. José Tolentino Mendonça revelou-nos Cristina Campo, e os seus ensaios breves são estupendos. Tive o privilégio de conhecer e apresentar Slavoj Zizek, erudito e provocador, e estes ensaios de Lacrimae Rerum, sendo sobre cinema, não exigem tanto aos leigos em Schelling. O melhor livrinho de política que li foi o de Pierre Manent (como «dessacralizar» o conceito de nação num mundo já dessacralizado), enquanto Paul Berman explicou 68 e os seus herdeiros. O ensaio de Zakaria não é um espanto, mas ainda assim parece menos justificativo do que o de Fukuyama. Os livros portugueses de que mais gostei este ano foram quase todos reedições, mas entre outros possíveis (Maria Velho da Costa ou Teresa Veiga, por exemplo), escolhi o regresso de Herberto e uma obra de amor e erudição sobre Lisboa.

Educação sexual














Verão de 42 (que outro dia revi de fugida num hotel), foi o filme da minha vida aos catorze anos. Havia ali um motivo que interessava ao adolescente que eu era: uma cidadezinha costeira sem homens, e com os rapazolas a arcarem com a obrigação de se portaram como homens. Os adultos estavam na guerra, e os miúdos, todos bastante imaturos, subiam um degrau na escala social, sem estarem minimamente preparados para isso. Eles juntavam um fascínio pacóvio pelas coisas do sexo (memorável a cena com o manual «progressista» cheio de termos em latim) e a obrigação de serem homenzinhos. O sexo era um assunto desconhecido, embaraçoso, onanista, até que Dorothy (Jennifer O’Neill) obrigava um dos rapazes a crescer, fazendo da sua «iniciação» o contrário de milhares de iniciações cómicas e desgostantes do cinema americano. Ela ia para a cama com Hermie (Gary Grimes) como consolo. Consolo dela (o marido tinha sido abatido em combate) e consolo dele (que a desejava há muito). Mergulhada no luto, a lindíssima e evanescente, Dorothy oferece a Hermie uma experiência sexual que é também uma experiência de tristeza e ternura, dando-lhe, num momento elíptico e irrepetível, não só o que ele desejava mas também uma memória agridoce, jubilosa e desolada Ela parte, mas deixa a Hermie, e para sempre, a magoada nostalgia daquele Verão de 1942.

[Summer of '42 é um filme de 1971 realizado por Robert Mulligan (1925-2008)].

Gone



Beautiful girl lovely dress
Where she is now I can only guess

Gonne



Why, what could she have done being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

Garganta funda

Gerard Damiano, autor de Garganta Funda, e Mark Felt, conhecido como o Garganta Funda, morreram ambos este ano, com umas semanas de distância. Isto anda tudo ligado.

18.12.08

E assim sucessivamente

A minha imagem

Expulsei a mentira como Cristo os vendilhões do templo. Com uma violência absolutamente necessária e justificada. Não me importa nada que isso tenha «prejudicado» a minha «imagem». Quero que a minha imagem se foda.

E voltou à vida

Pareço um protestante, porque quando me perguntam como estou, cito a Bíblia: «Pois este meu filho estava morto, e voltou à vida; estava perdido e foi achado».

A memória deslocada

Concordo em absoluto com o Augusto Seabra: a versão (cénica) do Quatuor pour la fin du Temps de Messiaen que vimos há dias no CCB foi um «abuso histórico» e um «abuso estético». Ligar Messiaen aos campos de extermínio de judeus não faz sentido. O compositor esteve num campo de prisioneiros comum, onde teve aliás tratamento «privilegiado», dada a sua condição de músico. Não se trata obviamente de menorizar o Holocausto, mas de não o usar a despropósito. Cito o Augusto: «Uma coisa é a indispensável memória histórica, outra é a mescla de factos apesar de tudo de ordem diferente, e tanto mais a mescla envolvendo uma concreta apresentação de uma obra como a de Messiaen, eventualmente configurando um abuso. / Isto não significa de maneira nenhuma uma “suspensão” da memória do Holocausto – só que ela é no caso deslocada, de modo mutuamente infrutífero, para o Quatuor pour la fin du Temps e para a concreta memória do universo concentracionário e de extermínio, incluindo as manifestações artísticas que ainda ocorreram nesse terrível universo». A minha suspeita é que através desse artifício se diluiu a fortíssima (e «incómoda») componente católica da peça e se converteu o Quatuor numa elegia às vítimas do nazismo, ideologicamente mais aceitável mas desadequada.

17.12.08


















(bem lembrado pelo Francisco)

16.12.08

O inevitável post sobre lingerie

A campanha da Triumph (com Cláudia Vieira) é portuguesa, kitsch, sugestiva e ternurenta. A campanha da Intimissimi (com Irina Sheik), é cosmopolita, lasciva, vermelha e peituda. O campeonato não é o mesmo.

A noite é nossa




A lista dos «melhores filmes do ano» chega dentro de momentos. Como aperitivo, recordo a melhor cena de abertura (digamos assim) do ano: We Own the Night, de James Gray, com Joaquin Phoenix e Eva Mendes.

15.12.08

Inspector Derrick



Morreu Horst Tappert, conhecido pela clássica série televisiva Derrick (1974-1998). Quando penso na Alemanha do «milagre económico» penso sempre nesse reverso da medalha dado por Fassbinder, Herzog, Böll e pelo inspector Derrick. Uma Alemanha tristonha, vergada ao peso do remorso, cheia de conflitos surdos e desesperos intelectualizados. Stephan Derrick, o Columbo alemão, resolvia com sisudez e paciência os crimes da burguesia abastada e emocionalmente reprimida. E acabava cada episódio sem a satisfação dos casos encerrados, como se cada fim fosse um recomeço. É um dos grandes pessimistas da ficção televisiva.

Forévaiangue



(para o Rogério ganhar uma aposta)

De Oliveira



Entre aqueles que elogiam apenas a longevidade de Manoel de Oliveira e aqueles que atacam a sua obra, há uma coisa em comum: não viram os filmes (10 minutos na RTP2 não conta). Nenhum cineasta tem sido vítima de tantos clichés e de tanta ignorância. Vale a pena ler o livrinho que acompanha a caixa Oliveira agora editada, onde João Lopes desmente com factos as parvoíces mais comuns (como a «duração excessiva»). Oliveira é um dos grandes cineastas vivos, e mais que os cem anos interessa sublinhar os setenta anos de carreira, a sua fidelidade voluntarista a um cinema livre e pessoal, à margem das ideias maioritárias e intolerantes. Digo isto à vontade, porque não sou um indefectível de Oliveira. Acho que tem vários filmes falhados (A Divina Comédia, A Carta) e alguns desastrosos (A Caixa, Um Filme Falado). Tenho também pouco interesse pelos seus filmes «históricos» (de Non até Cristóvão Colombo). Mas quem fez Douro, Faina Fluvial, Acto da Primavera, Francisca, Vale Abraão ou Vou para Casa não tem nada que provar aos filisteus. Adepto de uma noção teatral e literal da adaptação, é um dos grandes mestres do romanesco romântico, estilizado num registo distanciado e de uma ambiguidade católica perversa. Parece-me impossível gostar de Ozu, de Bresson ou de Dreyer e achar que Oliveira não vale nada. Não há nem nunca houve um só cinema (Godard fala da linhagem Lumière e da linhagem Méliés). Os filmes de Oliveira são difíceis, «elitistas» e pouco dados a expectativas comerciais e consensos críticos. Quem elogia o aspecto «anedótico» dos cem anos ou ataca os seus filmes, faz-lhe sem saber uma homenagem.

12.12.08

Estão convidados














Ouça aqui um excerto.

11.12.08

A escada do sublime

Eduardo Cintra Torres publicou no Jornal de Negócios um texto sobre a campanha da Triumph que me parece um testemunho civilizacional. Nunca percebi porque é que gente civilizada acha a beleza física um tema trivial. A beleza física é o mais sublime capítulo da Estética.

A Triumph recorreu pelo segundo ano consecutivo à modelo Cláudia Vieira para publicitar a sua lingerie. Nos media e na blogosfera, os anúncios com Cláudia Vieira provocam a alegria do género masculino e o silêncio do género feminino. Estranha divergência: a campanha publicita produtos para as mulheres mas são os homens que cantam hossanas. (...) A marca percebeu ser desnecessário colocar Vieira em poses de entrega: a imagem de símbolo do erotismo feminino arreigou-se-lhe de tal forma que a Triumph pôde mostrá-la este ano como mamã de cueca e sutiã junto do bercinho ("Rainha-mãe") ou rodeada de rosas como a "Rainha Santa" da mitologia nacional. (...) os anúncios com Cláudia Vieira parecem ir além dessa patética menoridade que seria assumida pelas mulheres que observam mulheres pressupondo o olhar dos homens sobre as outras e sobre si mesmas. Vieira exibe uma rara superioridade, dela mas também um dom, que ultrapassa essa limitação mesquinha, pois apresenta-se, de facto como um insuperável símbolo de beleza feminina e erotismo que consegue situar-se no domínio da estética, subindo a escada do sublime. O uso do conceito de "rainha" nestes anúncios vai nesse sentido. O erotismo é sublimado por uma visão de "arte pela arte", o corpo transformado em arte. Que isto suceda na arte vã e apressada da publicidade é digno do maior elogio.

10.12.08

Ipsilão

Agora online.

Olivier Messiaen



15 de Janeiro de 1941. Campo de prisioneiros Stalag VIII A, em Görlitz, Silésia. Temperatura negativa e neve abundante. Quatrocentas pessoas entram num barracão de madeira: o comandante do campo, oficiais e presos das mais diversas condições. Entram então quatro músicos: Etienne Pasquier, Jean Le Boulaire, Henri Akoka e Olivier Messiaen. Messiaen veste um fato rasgado de um soldado checo e calça uns tamancos de madeira. Os instrumentos também não estão nas melhores condições. O jovem francês dirige-se ao público e apresenta a peça, um quarteto para violino, violoncelo, clarinete e piano chamado Quatuor pour la fin du temps, composto ali mesmo no Stalag VIII A. Messiaen explica que o Quarteto se baseia numa passagem do Apocalipse em que um anjo majestoso levanta as mãos para os céus e diz (na tradução francesa que Messiaen trazia consigo): Il n'y aura plus de temps.

Durante 50 minutos, aquela pequena multidão comprimida ouve em absoluto silêncio aquela música cheia de inovações rítmicas, de impossíveis fortíssimos e lentíssimos. Uma liturgia intensa, etérea, inesperada. O compositor, dado a sinestesias musicais, descreveu assim um dos andamentos: «suaves cascatas de notas azuis e malva, douradas e verdes, vermelho violeta e laranja azulado – dominadas por cinzentos metálicos» Quando termina o último movimento, «Louange à l'Imortalité de Jesus», o público mantém-se mudo por alguns momentos, começa em aplausos hesitantes, e depois ovaciona e felicita os quatro músicos. Messiaen comentou: «Nunca fui ouvido com tanta atenção e compreensão». Pouco depois, o compositor é libertado. Torna-se professor do Conservatório, em Paris, onde foi mestre de Boulez, Stockhausen e Xenakis e de onde se reformou em 1978. Olivier Messiaen, o maior compositor religioso do século passado, nasceu a 10 de Dezembro de 1908, faz agora cem anos.

A estreia do Quarteto foi o momento mais inesquecível da sua vida, e ele recordava-o com frequência, às vezes com algumas liberdades poéticas. Esse extraordinário momento na história da música (e da guerra) não aconteceu por acaso. Messiaen era já um compositor conhecido, os alemães cultivavam a música erudita, e aquele campo era especialmente dado a actividades artísticas (tinha biblioteca, sessões de teatro, uma banda de jazz, conferências). Uma especificidade que abrangia apenas os presos ocidentais e que aliás servia como propaganda nas visitas da Cruz Vermelha. Messiaen e os outros músicos gozavam os privilégios dos chamados soldats musiciens (que formalmente não eram): o compositor tinha partituras, papel, lápis, sossego para escrever, instrumentos, um espaço para ensaios, e uma dose reforçada de pão e carvão.

Messiaen, professor e organista da Igreja de la Sainte Trinité, admirador de Debussy e Stranvinsky, tinha-se estreado na composição dez anos antes, e gozava do respeito geral de músicos e melómanos. Mobilizado como auxiliar médico, foi capturado em Verdun em Maio de 1940 e transferido para o Stalag VIII A. Quando foi agraciado com aquele tratamento de favor, escreveu para os três instrumentos (e os respectivos músicos) que encontrou no campo, a que se acrescentou um piano vertical que os alemães arranjaram e que ele próprio tocou.

Os membros do quarteto não tinham grandes afinidades, excepto o facto de serem quatro músicos franceses. Messiaen era um católico devoto, que aceitava a vontade de Deus (incluindo a prisão) e que sempre compôs peças litúrgicas, nomeadamente uma elegia aos mortos das Grandes Guerras chamada Et exspecto resurrectionem mortuorem. Quanto aos outros três, um era agnóstico, outro ateu, outro judeu e trotskista. No entanto, todos estavam enlevados com aquela redenção pela música, aquele milagre de liberdade no gelo prisional da Silésia.

Messiaen explicou que o quarteto tinha oito movimentos porque Deus fez o mundo em seis dias e descansou ao sétimo; o oitavo dia representava então a eternidade, marcada pela aparição de um anjo que declara o fim do tempo. O compositor vivia maravilhado com os pássaros (escreveu um Catalogue d'oiseaux), com a aurora boreal, com a esperança bíblica, com o cromatismo simbólico do Apocalipse. Tinha fome e frio, e saudades da família, mas vivia uma fé inabalável. Acreditava na «perpétua conversão do futuro no passado», mas também, como Eliot, no tempo passado contido no tempo presente. E acima de tudo num tempo depois do tempo a que chamamos, por falta de palavra mais justa, eternidade.


(texto publicado no Público de dia 6)

Os nós e os laços

António Alçada Baptista escreveu dois livros fundamentais para qualquer pessoa que queira pensar o catolicismo português: Peregrinação Interior - Reflexões sobre Deus (1971) e Peregrinação Interior II - O Anjo da Esperança (1982). Fundou uma das revistas mais estimulantes do nosso panorama cultural (O Tempo e o Modo) e uma excelente editora (a Moraes). Foi depois disso um bom presidente do Instituto Português do Livro. Era um homem afável, culto, cosmopolita e dialogante. Isto é justo que se diga, e tem sido dito. Mas também é justo que se lembre que Os Nós e os Laços (1985) marcou uma viragem na sua carreira e, mais importante, no romance português, hoje infestado de «literatura dos afectos» e de afilhadas de Alçada. As pessoas falam muito de O Que Diz Molero ou Os Cus de Judas, mas creio que Os Nós e os Laços teve mais influência na escrita portuguesa, marcando uma deriva «débil» que durou vinte anos (ainda dura) e de que talvez nos tenhamos finalmente libertado com o aparecimento de alguém como Gonçalo M. Tavares.

Havias de me ouvir tocar piano



So I broke into the Palace
With a sponge and a rusty spanner
She said: «Eh, I know you, and you cannot sing»
I said: «That's nothing - you should hear me play piano»

8.12.08

Um pateta confiante e crédulo

«O meu [ideal] encarnou numa mulher, porque eu idolatrava as mulheres. Quando ele caiu, eu também caí. Nas minhas cartas encontrarás um pateta confiante e crédulo, que acreditava em tudo, mesmo que era lixo (…)»

(Strindberg, carta a Axel Lundegard, 12 de Novembro de 1887)

A mais forte

Fadren / O Pai (1887) é uma defesa dos homens (contra o feminismo de Ibsen) e um violento ataque misógino com ressonâncias autobiográficas (o casamento de Strindberg com Siri von Essen corria mal).

A perfídia feminina é dada nesta peça através das maquinações da mulher do Capitão, Laura, feitas sobretudo através da sugestão. Ela sugere que a filha deles é filha de outro homem, sugere que o marido está louco, sugere que ela é o elemento mais forte do casal. E jogando com essas insinuações ou calúnias, destrói o Capitão, um homem muito menos viril do que aparenta.

CAPITÃO: (…) Pensei que desprezasses a minha falta de masculinidade, e quis conquistar-te como mulher sendo um homem.

LAURA: Esse foi o teu erro. (….) O amor entre um homem e uma mulher é uma guerra.


E nessa guerra ela é, de facto, a mais forte.

A mim primeiro e a ti depois

Há pactos suicidas entre amantes (Kleist e Henriette Vogel). Há homens tresloucados que assassinam a mulher e depois se suicidam. Eu sou incapaz de actos tão sublimes ou tão trágicos. Fico-me pelo verso de Reininho: «mato-me primeiro e a ti depois».

A praga

Eliminei a praga da mentira. Mas é possível que me aconteça o que aconteceu a Mao Zedong: ordenou que os agricultores chineses combatessem a praga dos pardais e nesse ano as colheitas sofreram uma praga de insectos.

Cair para fora

Quando não chega o tempo, tentem a distância.
Quando não chega a distância, tentem o tempo.
Quando o tempo e a distância não funcionam, tentem a violência.
Sabendo que ganham a vida mas perdem a alma.

Quatro advérbios e cinco adjectivos

A escrita é inútil? Talvez seja, mas a verdade é que resolvi a minha vida com quatro advérbios e cinco adjectivos.

Heretic pride

Acordo aos 36 com uma canção que exalta um «heretic pride»: o orgulho herético de estar vivo. Gosto da ideia, mas ainda não me sinto capaz de tal heresia.

Lisa Fremont

Morreu John Michael Hayes, um dos muitos (e maltratados) argumentistas de Hitchcock. Fica na história por uma obra-prima: Rear Window. Pegou num conto de Cornell Woolrich e fez várias alterações e acrescentos, entre os quais a personagem de Lisa Fremont: uma mulher bela, sofisticada e carinhosa. Daquelas que só existem nos filmes.

4.12.08



And if you should die
I may feel slightly sad
(But I won't cry)

Da responsabilidade penal

Textos de um «inimputável»? É possível. Ou então de um inocente que se acusa de crimes que não cometeu, e que assim se torna culpado.

3.12.08


















Nada de Melancolia reúne as crónicas que foram originalmente publicadas na revista NS (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) entre Janeiro de 2006 e Abril de 2007. Nada de Melancolia tem prefácio de Miguel Esteves Cardoso, é editado pela Tinta da China, e será posto à venda dia 9 de Dezembro.

«Ela»

Quando o «tu» se transformou em «ela», ela deixou de existir para mim. Existe agora apenas esse seu fantasma com quem dialogo, «ela» que agora escrevo porque não vivi. Com ela aprendi que não se apanha gente caída no chão, com ela veio o fim de ilusões que deviam ter acabado muito antes, e a vergonha pública que se envergonhava de ser privada. Agora já não é ela mas «ela», um pronome, um facto vocabular, um barulho de letras, uma remissão, uma entidade, um espectro, um remorso, uma lição.

A paixão dos fortes

Ele disse, ou disse eu depois daquilo que ele me disse a mim: é verdade que quem ama faz sacrifícios, é uma verdade trivial, mas há uma coisa mais importante que isso: quem aceita a ideia de sacrifício já aceitou a ideia do amor. O sacrifício não é apenas uma parte integrante do amor; o sacrifício é a própria definição do amor, porque é a suspensão do egoísmo.

Ele não me conhecia de lado nenhum, mas garantiu, ou garanti eu depois daquilo que ele me disse: ela não recusou o amor por ter recusado o sacrifício; ela fugiu do sacrifício porque foge do amor. Porque admitir a fraqueza é dar parte de fraca, e ela tem a paixão dos fortes.

1.12.08

Pouco condecoradas

Particularmente não lhe escreveria, porque me prezo de não ter correspondentes senão pessoas inteligentes, pouco condecoradas, e de provada ortodoxia em gramática portuguesa. V. Exa. não está neste caso.

(Carta aberta de Antero de Quental ao Marquês d’Ávila e de Bolama, presidente do Conselho de Ministros, 30 de Junho de 1871)

O sangue (2)



But blood makes noise
It's a ringing in my ear
Blood makes noise
And I can't really hear you
In the thickening of fear


(Suzanne Vega)

O sangue



Antigamente, os médicos sangravam os doentes por tudo e por nada. Parece uma violência escusada, mas talvez não seja. Se as doenças correm no sangue, por que não fazer correr o sangue?