30.9.08

Pavese cem anos depois

Cesare Pavese nasceu em Setembro de 1908, e aproveitei este mês centenário para uma evocação em fragmentos. Quem queira continuar as leituras e não domine o italiano, tem em português as seguintes edições:

O Camarada (Minerva, trad. Adelino dos Santos Rodrigues)
Diálogos com Leucó (Assírio & Alvim, trad. José Colaço Barreiros)
Férias de Agosto (Quasi, trad. Ana Hatherly)
A Lua e as Fogueiras (Colecção Mil Folhas, trad. Manuel Seabra)
Ofício de Viver (Relógio D’Água, trad. Margarida Periquito)
Trabalhar Cansa (Cotovia, trad. Carlos Leite)
O Vício Absurdo (& Etc, trad. Rui Caeiro)

Das edições em inglês e em francês que tenho, a minha favorita é esta antologia editada pela New York Review of Books:

O falso cerebral

Nunca tinha lido com atenção a obra ensaística de Pavese, que comprei em Itália há uns anos (La letteratura americana e altri saggi, 1951). Li agora. E confirmei que não é a sua faceta mais memorável. Os ensaios sobre literatura americana são importantes e empenhados, mas o original (Matthiessen) vale mais que o seu discípulo. Os ensaios sobre o mito parecem redundantes face aos Diálogos com Leucó. E os ensaios políticos têm pouco interesse, entre profissões de fé apressadas e discussões com os jdanovistas (que naturalmente censuravam as «ruminações egotistas»). Mas esta leitura cimentou uma ideia que eu tinha de Pavese: a de que é um falso cerebral, que «resolve» intelectualmente problemas essencialmente emocionais. E quem resolve intelectualmente problemas emocionais está envolvido na mais ingrata das tarefas: a auto-justificação.

4 vidas

Não tenho 7 vidas como os gatos, mas descobri que tenho 4. Uma vez gastas as primeiras três, compreenderão que proteja a quarta como uma fortaleza.

29.9.08

O meu epitáfio

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) é dedicado «ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver». Eu então gostava que escrevessem na minha campa aquilo que um crítico disse sobre Brás Cubas (a personagem): «Um sujeito nulo, que escreve para os jornais, escapa de casar e morre».

Porquê Machado

Porquê Machado? Porque é um inglês no Rio. Um sujeito céptico, fleumático, inquieto, lúcido. Porque é, com Tchekhov, o génio da tragicomédia. Porque tem ironia no understatement e no virtuosismo de estilo. Porque é lúdico na narrativa e pessimista no retrato. Porque escreveu livros «de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado». Porque superou incompletamente o romantismo (como se deve) e não embarcou na superstição naturalista. Porque foi um escritor de ideias, mas logo trocava uma ideia por uma digressão, por um detalhe, por um gesto.
Para quem, como eu, não pode ir hoje e amanhã à Gulbenkian, fica o dossiê do Estadão, com obras descarregáveis em pdf e tudo.

A primeira virtude de um defunto

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)

Paul Newman (1925-2008)

The Hustler (1961) é intocável, mas nos outros filmes com Paul Newman experimento sempre alguma reticência. David Thomson, numa apreciação pouco generosa, mencionou dois possíveis motivos de reserva: «porous cockiness and mumbling naturalism». Não creio que seja isso. Newman não podia escapar ao seu aspecto e ao seu treino. A beleza física imaculada e os olhos azuis magnéticos tornavam-no inevitavelmente seguro de si; e aquela facilidade artificiosa é a própria definição do Método. Aliás, segurança e frieza davam nele um inesquecível júbilo mozartiano. Talvez por isso Newman nunca tenha feito um vilão detestável (Pauline Kael: «his likableness is infectious»). Mas há um preço a pagar pelo equilíbrio, que é uma certa «aversão à intimidade» (Thomson de novo). Aversão naturalíssima num homem frio e belo, mas que eu acho um defeito num grande actor. Se lembramos (muito justamente) os seus Tennessee Williams, sobretudo Cat on a Hot Tin Roof (1958), é porque neles a beleza de Newman funciona como ecrã perfeito para as ambiguidades sugeridas. E nisso ele sempre foi bom. Homem de uma classe indiscutível, nunca falhou no estilo lacónico e irónico. Mas alguém lembrou que ele não deixou nenhuma grande cena de amor: a exposição emocional é coisa de gente frágil, e ele cultivava a distância própria do classicismo. Com excepção da morte de um filho em 1978, Newman viveu uma vida feliz e protegida dos excessos. E isso nota-se em tudo o que fez. Ao passo que ninguém imagina um Montgomery Clift feliz.

28.9.08

Eu vou

Amanhã, dia 29 de Setembro, a Casa Fernando Pessoa realiza uma maratona de leitura de Machado de Assis, entre as 10 e as 18 horas. Nesta ocasião far-se-á a leitura integral da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, e o registo gravado da leitura será oferecido à Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO). Esta sessão de leitura contínua é aberta a todo o público interessado em ler ou escutar a obra deste grande escritor brasileiro, no dia em que se cumprem cem anos sobre a sua morte.

Agora que estou na tua sombra



I'll be a crash landing who can change
The landscape talking
And when I begin to stutter
The land will be shaking
God will be clapping


(Damien Jurado, «And Now That I'm In Your Shadow», do álbum homónimo de 2006)

27.9.08

Quatro frases sobre o mundo

Quatro frases sobre o mundo, como neste email que agora mesmo recebi. Uma justificação, uma impossibilidade, um lamento e um agradecimento. Se ao menos o mundo se explicasse assim mais vezes. Em quatro frases justas e tristes.

26.9.08

A tua juventude se possível



Eu respondia que não gostava de Ruy Belo, porque não confessava a ninguém que gostava muito mas me custava também muito. Volto a ele com alguma frequência, e voltei agora de novo na evocação dos trinta anos da sua morte. Regressei aos livros que primeiro descobri, editados pela Moraes (Transporte no Tempo, 1973, Toda a Terra, 1976) e comprados em saldos por tuta e meia. Ainda me lembro como fiquei incomodado quando cheguei a casa e os li noite dentro. Foi uma experiência única: percebi que aqueles poemas me faziam mal. Eu tinha vinte anos, era demasiado cedo para me preocupar com a passagem do tempo, mas já era dado ao sofrimento por antecipação, ainda hoje sou, e foi esse tema que me perturbou logo nos poemas de Ruy Belo, não apenas a passagem mas o “transporte”, as épocas misteriosamente cruzadas, o tempo passado contido no presente e o presente no passado, como em Eliot. E as estações, a sensação de que vivemos na estação errada, de que sentimos emoções mais apropriadas à estação anterior ou à seguinte, à estação autêntica. E as raparigas eternamente raparigas e tão mortais como um relance. Eu pensava que a melancolia era um sentimento suave até conhecer esses poemas. Foi um choque tão grande que fiquei anos sem tirar esses livrinhos da estante, com medo. [...]

(no Público de amanhã)

O tema e o motivo

Num artigo de 1966 (recolhido postumamente em livro), Italo Calvino escreveu que o estilo «reticente e elíptico» de Pavese é um estilo que povoa os textos de sinais. E os sinais têm sempre um «tema oculto»: a exclusão. É uma descrição exacta, mas pergunto-me se em vez de «tema» Calvino não queria dizer «motivo». Duvido que a exclusão seja um tema e não um simples sintoma.

E terá os teus olhos

Outra entrada curiosa no dicionário de Gigliucci é aquela em que ele interpreta o verso «virá a morte e terá os teus olhos» de modo menos lírico que o habitual: Gigliucci acha que significa «virá a morte e possuirá os teus olhos», ou seja, destruirá os teus olhos. Um pouco menos poético, bastante mais factual.

A calma

No dicionário pavesiano editado pela Mondadori em 2001, Roberto Gigliucci escreve uma entrada inesperada: «Calma». A «calma» em Pavese é quase uma palavra de código. É a «masculinidade» mitológica que ele atribui aos homens potentes e seguros de si. «Calma» é na verdade uma expressão estranhamente branda para designar essa condição que Pavese almejava, e esconde a violência latente do seu conceito de masculinidade (e a violência patente da sua misoginia). Pavese tem aliás reacções diferentes à calma e à violência em matéria sexual. Quando Tina lhe diz (em 1937) que ele é incapaz de satisfazer uma mulher, ele interpreta isso (e justamente) como uma grande violência, e nunca mais esquece a frase. Estranhamente, quando consuma a relação com Constance (em 1950), elogia a ternura e a paciência dela. Seria uma reacção normal noutra pessoa, mas é bizarra em Pavese, um homem que sempre rejeitou as mulheres que gostavam dele. Bizarra e paradoxal: a «ternura» e «paciência» de Constance (aliás surpreendentes) são um insulto à «calma». Um homem «calmo» não precisa de «ternura». E ainda menos de «paciência». A «potência» não perde tempo com sentimentos. Vemos então que a ausência momentânea de cinismo deixou Pavese desprotegido. E quando Constance o deixa, ele já não tem tempo de recuo.

25.9.08

The fallen aristocracy



[obrigado PAS]

O bem com que me iludem

Cada um é como é. Eu esqueço facilmente o mal que me fazem. Mas nunca perdoo o bem com que me iludem.

Tutto questo fa schifo

Constance Dowling, a última amada de Pavese, foi amante de Elia Kazan. Na sua autobiografia, o cineasta conta que ele e a fogosa actriz tinham sexo em todo o lado, «como animais na época da caça». Essa passagem é evocada em Quell’antico ragazzo (2006), de Lorenzo Mondo, que também cita a reacção de Constance à morte de Pavese: «I did not know he was a famous writer». A gente lê isto e percebe a última frase de Pavese: «Tutto questo fa schifo».

Apanhar mais na cabeça

A ordem homologada pelos sábios é conhecida: 1) negação 2) raiva 3) tristeza 4) aceitação. Talvez porque acredite pouco nos sábios, tive de imediato o 3 e 4, supostamente os últimos na sucessão dos eventos. Já o 2 avançou em espasmos intermitentes, e só agora ataca com força. Quanto à fase 1, a primeira de todas, nunca aconteceu. Antes de escreverem, os sábios deviam apanhar mais na cabeça.

Angry young man

24.9.08

A normalidade democrática

A verdade é que me estou nas tintas para a normalidade democrática e a sua estúpida coreografia. Continuo a agir de acordo com aquilo em que acredito, e não com aquilo que é conveniente. «O Mexia», como os amigos avisaram a tempo, «é louco».

As navalhadas

Tinha algumas saudades deste tipo de sofrimento, destas navalhadas de viés nos rins. Não que eu seja masoquista: mas antes isto que o sonambulismo. E fico espantado com a força que ganhei nos últimos anos, o estoicismo com que aguento estes golpes, como alguém que fosse amputado sem anestesia e não mexesse um músculo.
Logo, às 18.30, na Casa Fernando Pessoa, conversa sobre Ruy Belo, nos 30 anos da sua morte. Debate com Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz e Pedro Mexia. Leitura de poemas por Luís Miguel Cintra.

Os vendedores de pombas


















Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas.(Mateus 21: 12)

Dos violentos é o Reino dos Céus



Em The Violent Bear It Away (1960), agora traduzido em português, aprendemos por exemplo que um afogamento é uma espécie de baptismo. É uma violência abençoada, esta, colhida em Mateus 11: 12 que numa das versões inglesas diz: And from the days of John the Baptist until now, the kingdom of heaven suffereth violence, and the violent bear it away. É isso que é bom nesta minha inédita violência: não só percebo que um afogamento pode ser um baptismo, mas para atingir o baptismo nem recuo perante um «afogamento». A violência também é um caminho para o Reino dos Céus.

23.9.08

Cruyff como experiência religiosa

Já foi comentado na blogosfera um texto de David Foster Wallace («Federer as Religious Experience») que eu tinha comentado em esboço. O Francisco, por exemplo, lembrou Daney, e não vale a pena repetir o que ele já escreveu. O ensaio de Wallace é de facto maravilhoso na análise das jogadas e nas passagens sobre as transmissões televisivas e a sua «ilusion of intimacy»; mas Wallace também congemina uma teoria estética do desporto: Beauty is not the goal of competitive sports, but high-level sports are a prime venue for the expression of human beauty. The relation is roughly that of courage to war. / The human beauty we’re talking about here is beauty of a particular type; it might be called kinetic beauty. Its power and appeal are universal. It has nothing to do with sex or cultural norms. What it seems to have to do with, really, is human beings’ reconciliation with the fact of having a body. Quando alguém exclama «não percebo como é que gostas de futebol» (seja isso desinteresse ou moralismo), eu tento dizer que não é possível apreciar a beleza em geral e não apreciar a beleza do movimento. E conheço poucos movimentos tão belos como, digamos, os dribles de Johan Cruyff.

Um coração como o meu

Leio que Dostoievski, quando se viu abandonado pela sua amante Apollinaria Souslova, lhe caiu aos pés e disse: «Nunca mais encontrarás um coração como o meu». Quase me cai aos pés o livro em que leio isto. Usei uma vez uma frase quase assim, nada sofisticada, lamechas, feita pânico e súplica. E fui atacado como nunca tinha sido. Toda a gente me chamou terrorista e mentiroso. Mas eu nunca disse nada tão pacífico na vida. E nunca disse nada tão verdadeiro. Disse e digo: «Nunca mais encontrarás um coração como o meu» (e agora cito Dostoievski).

22.9.08

Instruções de leitura Estado Civil 2006/2008

Dostoievski foi condenado à morte por motivos políticos e fuzilado em 22 de Dezembro de 1849. Fuzilado? Exacto. É que embora o pedido de clemência tenha sido concedido à última hora, Dostoievski e os seus companheiros foram na mesma conduzidos ao pelotão de fuzilamento. E os soldados encenaram a excecução que tinha sido cancelada. Suponho que ensinaram a Dostoievski a «lição» que queriam ensinar, pois é aos vivos, e não aos mortos, que as lições aproveitam.

Excesso e defeito

Fernandez diz que a impotência em Pavese é tão importante como a epilepsia em Dostoievski. Ideia discutível, de ambos os lados. Podemos responder que a impotência de Pavese não era realmente impotência, enquanto Dostoievski sofria de facto de epilipesia. Mas também podemos argumentar que a doença de Dostoievski vinha acompanhada de outras doenças tal como o vício do jogo; ao passo que em Pavese a «potência» era a chave de tudo. A comparação peca pois por excesso e defeito.

La spiaggia



Fernandez chama-lhe um romance sobre «a felicidade dos outros». É também um romance sobre as brechas nessa felicidade, as conjecturas, os oportunismos, as fidelidades, os ciúmes entre amigos e a masculinidade. É La spiaggia (1941), um dos meus Paveses favoritos, que também deu um belíssimo filme português: Agosto (1987), de Jorge Silva Melo.

Ficha clínica

Órfão de pai e inibido por uma mãe austera, acumulou um sentimento de culpabilidade e um complexo de inferioridade. Desejou mulheres dominantes e agressivas, e exacerbou uma deficiência sexual. Tinha tendências masoquistas. Foi rejeitado e traído, e escreveu páginas vingativas sobre fêmeas animalescas e infiéis. Identificava a natureza com a infância e procurou na mitologia uma justificação intelectual do seu «destino». Não valorizava o sucesso mas cortejava o fracasso. Vivia obcecado pelo suicídio e sempre se comportou como um fatalista.

Eis Pavese segundo Dominique Fernandez. Esta interpretação psicanalítica, quase em jeito de ficha clínica, aparece em Le voyage d’Italie (1997), um «dicionário amoroso» que recupera ideias de L’échec de Pavese (1968). É um conjunto de textos informados e lúcidos mas que contribui para os sintomas que analisa. Um exemplo: Fernandez sugere que Pavese ficou erroneamente conhecido como «intimista» e «realista», quando na verdade foi um «estilista» e um poeta da «incomunicabilidade». Mas quem recusa um Pavese «realista» e «intimista» não deve com certeza esmiuçar a sua biografia à espera de aí encontrar a chave dos textos. Quando é exactamente isso aquilo que Fernandez faz. Quando ele lamenta que os últimos escritos de Pavese sejam «regressivos», podemos perguntar se a leitura biografista de Pavese não é forçosamente regressiva.

Os Mackeys

Ela pergunta se eu não acho tudo aquilo exagerado, toda aquela masculinidade apregoada, o kiss & tell, aquele rol de 1003 como don juan. Digo que é simplesmente uma caricatura. E que tal como todas as caricaturas exagera apenas ligeiramente. O mundo está cheio de TJ Mackeys.

Mackey é a personagem de Tom Cruise em Magnolia, um agressivo guru da masculinidade. É uma grande criação cómica, mas corresponde a uma figura que todos conhecemos. O mundo está cheio destes pequenos nietzchianos sexuais que valorizam a «vontade de poder» e que olham para as mulheres com «lascívia e desprezo». Para os Mackeys, só existe na verdade a psique masculina e a sua vis dominandi. As mulheres são animaizinhos agradáveis mas não passam de acessórios da glória masculina, que é uma glória fálica e demencial.



Dou a palavra a Frank TJ Mackey: Respect the cock! And tame the cunt! Tame it! Take it on headfirst with the skills that I will teach you at work and say no! You will not control me! No! You will not take my soul! No! You will not win this game! Because it's a game, guys. You want to think it's not, huh? You want to think it's not? Go back to the schoolyard and you have that crush on big-titted Mary Jane. Respect the cock. You are embedding this thought. I am the one who's in charge. I am the one who says yes! No! Now! Here! Because it's universal, man. It is evolutional. It is anthropological. It is biological. It is animal. We...are...men!

Mackey é uma caricatura da «masculinidade», mas a própria «masculinidade» já é uma caricatura.

Radicais e moderados

Em política, fui-me tornando um moderado (sem nunca ter sido realmente um radical) em reacção ao sectarismo dos radicais. No amor, fui-me tornando um radical (sem nunca ter sido realmente um moderado) em reacção ao cinismo dos «moderados».

Reciprocidade

As palavras dela eram muito calorosas e as atitudes muito frias. Só mais tarde percebi que as palavras dela respondiam às minhas palavras (que a fascinavam) e as suas atitudes respondiam às minhas atitudes (que a aborreciam). Não havia timidez nem discrepância alguma: o comportamento dela era um modelo de reciprocidade.

20.9.08

Caso prático

Pequeno destaque em caixa com fundo que também pode servir de legenda para a fotografia do lado esquerdo

E agora

E agora, um texto sem aspas nem itálicos.

Direito comercial

A «vida em sociedade» não condicionou apenas a minha reacção: é a chave do próprio acontecimento. Em vez da simples vontade individual, houve em grande medida uma decisão colectiva. Fui colectivamente avaliado e em consequência declarado inviável.

É normal que tenha ficado atónito. Não sei nada de direito comercial.

Geografia

Reconheço agora três etapas nítidas na minha «vida amorosa». Num primeiro momento uma adolescência tardia, que correspondeu uma fase estritamente sentimental, idealista e casta. Era o amor como paixão predestinada e trágica. Num segundo momento, de juventude, surgiu a ideia de «relação» e, especificamente, de estabilidade emocional. O terceiro momento, já em idade adulta, jogou com a sexualidade (como subcapítulo da agressividade) e a vida em sociedade (ambição, domínio, exibicionismo, desprezo). É esse alargamento «geográfico» que explica a actual incapacidade de recuperação. É que do «ego» e do «casal» podemos regressar com algum esforço, mas é impossível abandonarmos por completo a vida em sociedade (e olhem que eu tenho tentado).

19.9.08

As Criadas

O espectáculo As Criadas que está em cena no CCB suscita-me uma interrogação. Não é uma crítica: é mesmo uma dúvida. A versão portuguesa faz várias alterações ao texto, a mais notória das quais é que as três mulheres passam a três homens. Mas isso até Sartre, no seu tratado de canonização, achou admissível, porque representava o cúmulo do artifício. Já o jogo excessivo dos actores (aliás excelentes) me parece questionável. No texto «Comment jouer Les bonnes», Genet escreveu que o estilo de representação devia ser acima de tudo «furtivo». E creio que «furtivo» significa também «contido». Então porque é que As Criadas é «excessivo»? Talvez seja a ideia de que o teatro «homossexual» tem que ser um teatro excessivo. Compreendo essa ideia. Mas o excesso é uma categoria transgressiva e não apenas uma categoria histriónica.

18.9.08

Um disfarce do destino



Dão à personagem principal de La Jetée (1962) a oportunidade de fugir para o futuro, onde fica a salvo de todo o mal. Mas ele, em parte por causa de um rosto feminino, prefere regressar ao passado e tentar recuperar uma hipótese de felicidade. Eu escolheria o mesmo. Acredito no passado e descreio do futuro. O filme explica isso num fulgurante aforismo «Ce sophisme fut acepté comme un déguisement du destin».

A história no cinema

O Público apresenta hoje o ciclo Manoel de Oliveira que decorre em Serralves, com os filmes comentados pelo próprio cineasta. Eis o que diz sobre Gertrud: «É o filme mais fantástico de todos os tempos que eu jamais vi. Toca o absoluto. É uma dama que quer o amor absoluto, mas este não se encontra nesta vida. Acusavam o Dreyer de ser religioso, por ter realizado o milagre. Mas aqui, não, é a procura do amor absoluto. É a relação de um escritor com a sua mulher, que ele acusa de perturbar a sua escrita. Ela percebe que ele não a ama verdadeiramente, e recusa-o. Ela amava-o, mas ele não a amava. No final, em vez de tocar o relógio, na mudança de cena, tocam os sinos. É a morte, onde ela encontra o amor absoluto».

Almocei com Manoel de Oliveira na semana passada, no lançamento deste ciclo, e ele começou o almoço a falar precisamente de Gertrud. E não foi uma apreciação do filme: foi um relato minucioso, quase sem qualificativos e com muitos verbos, coisa estranha num filme de enredo tão sucinto.

Hoje em dia é muito comum vermos filmes reduzidos à caricatura da sua «história». Às vezes ligo para um número do menu do telemóvel que oferece «informações sobre cinema». Consiste numa senhora ou num cavalheiro, ambos fanhosos, que esmiuçam mais de metade da intriga dos filmes em cartaz. É o cinema como «conteúdo» em versão maquinal. Em contrapartida, a maneira detalhada como Oliveira nos contou Gertrud tinha mais a ver com uma «découpage»: o importante não eram as peripécias mas as minúcias da construção narrativa no cinema.

As massagens

Sempre tive uma ideia lasciva do conceito «massagem». Ainda não sabíamos que «massagem» era uma palavra de código e já eu e os meus primos adolescentes usávamos o termo «coçanço» para designar uma massagem dorsal ambígua. Uma daquelas que «sabemos como começam e não sabemos como acabam». E eu trauteava «do you have a vacancy for a backscrubber?». Anos depois, a discussão passou das costas aos pés, com o imortal diálogo tarantinesco sobre «foot massage». Entretanto, a minha coluna infame exigiu cuidados. Tentei massagens terapêuticas, massagens relaxantes e mesmo massagens com final feliz. Gostei sobretudo das terapêuticas, executadas pela inesquecível «dra. Andreia», uma miúda ladina que se punha em cima de mim com o joelho esquerdo dobrado e prometia entre duas risadas: «vamos lá fazê-lo estalar». E eu estalava.

17.9.08

Viagens ao país do povo



(a propósito de uma sequência de textos do Osvaldo sobre o filme de Miguel Gomes)

O que é «o povo»? O que é «o povo» para um artista? E para que serve? Em Courts voyages au Pays du peuple (1990), Jacques Rancière estuda vários casos (Wordsworth, Büchner, Michelet, Rilke, Rossellini) e chega sempre à mesma conclusão: «o povo» é uma entidade imaginada por quem se considera estrangeiro a essa classe. Os artistas que visitam o «país do povo» carregam uma bagagem ideológica que constrói uma ideia de povo. Uma ideia que exprime necessidades pessoais do artista e que não depende de factos «etnográficos» fiáveis. Que um marxista como Rancière desvende esta verdade inconveniente é uma coisa notável.

Eurípides

Ligo a TV na novela e ouço a seguinte frase: «Quando a Beatriz apareceu, como Teresa, eu naturalmente não a reconheci». E pensei: «Isto ou é Eurípides ou é uma merda». Vi mais um poucochinho. Não era Eurípides.

Retrato de um amigo

Calvino disse que era a mais bela evocação de Pavese: é «Ritratto d’un amico», de Natalia Ginzburg, texto incluído em Le piccole virtú (1962). A viúva de Leone Ginzburg, intelectual assassinado pelos nazis, fez nesta dezena de páginas uma melancólica evocação da cidade de neve e névoa («a nossa cidade») e de um melancólico amigo dos Ginzburg («o nosso amigo»). Confessa que não distingue Turim e Pavese e que antes dos poemas de Pavese nem imaginava que Turim fosse digna de poesia. Ela lembrava-se bem dele e dos seus paradoxos: um sujeito taciturno e veemente, exigente e ingénuo, agreste e gentil. Pavese, sugere Natalia, tinha as virtudes e os defeitos de um adolescente: “(…) às vezes, ficava muito triste: mas nós pensávamos que ele se ia curar dessa tristeza quando decidisse tornar-se adulto» (itálico meu). A tristeza de Pavese exprimia uma incapacidade para a felicidade. Ele sofria com o mal e não se alegrava com o bem. Incapaz de uma «vida normal», decidiu um dia que era também incapaz de viver. E é comovente a passagem em que Natalia Ginzburg lembra que ele escolheu morrer em Turim, no verão, quando o tempo fica quente e a cidade vazia.

Duas dinamarquesas desabotoadas

A Time Out, em simpático understatement, chama-me «um céptico da noite de Lisboa». É a propósito da «reportagem» sobre o Lux que escrevi a convite da revista e que vem na edição que chegou hoje às bancas.

« (...) Quando desci, eram 3 e tal da manhã, estava 1 pessoa no meio da pista, um estrangeiro de blusão castanho surrado, que praticava uma dança que consistia em apontar para vários sítios aos sacões, como se fosse um deputado com Tourette. À volta, nada de especial, miúdas com unhas mal pintadas encostadas ao balcão à espera de um engate, tipos de cabelo rapado com borbulhas no pescoço, uma finalista de um curso de Bolonha com uma combinação, um sósia de metade dos ABBA com uns chinelos 45. A «música», como sempre nestas circunstâncias, era no essencial um programa informático em loop. Ninguém avançava para o meio do salão, que estava mergulhado em luzes carmim e com uns grandes projectores redondos de luz encadeante comprados nuns saldos da Stasi. Voltei para cima e fui para a varanda, espreitando duas dinamarquesas que chegavam de táxi, meio desabotoadas (...)».

16.9.08

Gradiva



Um dos textos mais fabulosos que conheço é a Gradiva de Freud, de seu nome completo Delírio e Sonho na «Gradiva» de W. Jensen (1907). A decisão de partida é bastante ousada: Freud, que já tinha estudado os sonhos «reais», decide investigar os sonhos imaginados (pelos escritores). A essa pesquisa não é alheia a questão do sentido. Muita gente rejeitava a ideia de que os sonhos têm uma lógica, sugerindo que são simples «excitações somáticas». Mas mesmo esses têm que reconhecer que um sonho sonhado por uma personagem obedece a um sentido, que é aquele que o escritor congeminou. Se os sonhos são desejos para o futuro, então um sonho é um modo legítimo de encaminhar o destino de uma personagem (vem na Bíblia).

Freud recorre então ao romance Gradiva, de Wilhelm Jensen, publicado em 1903. É quase um case study feito ficção, e daí que a ficção se torne case study. A longa sinopse que Freud elabora é assombrosa, e depois vem um trabalho de interpretação dos mais pequenos detalhes que lembra as reconstituições intrincadas feitas pelas «celulazinhas cinzentas» de um certo detective belga (ficcional). Gradiva é a história de um arqueólogo chamado Norbert que descobre num museu italiano um baixo-relevo que o fascina. É uma rapariga a andar, que levanta ligeiramente a túnica descobrindo os pés calçados com sandálias, um deles em posição vertical. Norbert faz uma cópia em gesso e chama-lhe Gradiva, «aquela que resplandece ao andar». E o rapaz que até ontem mostrava desinteresse pelas mulheres reais, vive agora obcecado com uma figura hipotética que viveu e morreu há séculos. Sonha com ela, sonha que a encontra em Pompeia no ano 79 e um dia, acordado, encontra mesmo uma rapariga que acha que é a sua Gradiva. Impossível duvidar da inquietante mas agradável «natureza corpórea» dessa rapariga ali à sua frente e que fala com ele em alemão. A rapariga embarca no delírio e finge que é de facto a Gradiva, mas depois revela que é a Zoe («vida»), uma miúda que Norbert amou na infância e que tinha esquecido. Desapossado do seu fetichismo, Norbert fica aparentemente «curado», mas ainda pede a Zoe que pegue no vestido como se fosse a Gradiva. Ela aceita.

Talvez Gradiva se deva guardar na estante entre Pigmalião e Vertigo. É uma história deslumbrante de mulheres inventadas, identidades trocadas, disfarces consentidos. Freud partiu para este ensaio dando como adquiridos os conceitos de «real» e de «sentido», mas o que é real e ficcional nos delírios do arqueólogo? E que «sentido» tem uma história que ganha sentidos diferentes na interpretação freudiana, sentidos ocultos, ambíguos, recalcados? O «final feliz» de Jensen e de Freud («boy meets real girl») é em si mesmo bastante irreal. E muitísismo interpretável.

Zoe nunca poderá ser tão perfeita e imortal como Gradiva. E Norbert nunca poderá ser tão dedicado a uma mulher com «natureza corpórea» como à sua fantasia soterrada em Pompeia. Se, como Freud sugere, uma fusão entre duas mulheres distintas sugere uma equivalência, que equivalência pode nascer da fusão entre Zoe (uma rapariga alemã) e Gradiva (uma ficção romana com dois mil anos)? Alguma vez a mulher real que um homem tem ao seu lado pode competir com o estatuto «resplandecente» das mulheres que ele imaginou?

A verdade é que Freud também comprou uma cópia em gesso da Gradiva e a guardava no seu escritório. Há ícones que são bibliotecas.

Sem pensar duas vezes

Em 1962, Tina Pizzardo (1903-1989) redigiu uma autobiografia, vinda a lume apenas em 1996. Tem um título fascinante: Senza pensarci due volte. Nunca li o livro, e até há pouco tempo nem sabia da sua existência. Imagino que sejam umas «memórias antifacistas», visto que Tina foi comunista e resistente; mas acho difícil que evite o tema Pavese. E imagino se esse «senza pensarci due volte» se refere também a Pavese. Em Il mestiere de vivere, ele escreveu: «(…) tinha encontrado o caminho da salvação. Apesar de toda a fraqueza que existia em mim, aquela pessoa sabia ligar-me a uma disciplina, a um sacrifício, com a simples dádiva de si. (…) Porque, abandonado a mim próprio, já o sei por experiência, tenho a certeza de não vencer. Unido a ela, numa só carne e num só destino, conseguiria, tenho a certeza absoluta. Até mesmo por causa da minha cobardia: a meu lado, essa mulher teria sido um imperativo. // Em vez disso, o que ela fez! Talvez não o saiba, ou, se o sabe, não lhe interessa. E é justo, porque ela é ela e tem o seu passado que lhe traça o futuro» (itálico meu). Acho que seria mais criticável se ela tivesse «pensado duas vezes» só porque Pavese morreu e se tornou famoso. O «talvez não saiba ou talvez não lhe interesse» que ele temia é ainda assim mais digno que o oportunismo sentimental.

Uma coisa viva que caiu

Ela fala do futuro e eu não escondo o meu desinteresse pelo tema. Todo o futuro que tinha esgotou-se, esvaiu-se. Agora as ocupações são rotinas inócuas, entreténs ou descontos de tempo. Zombie razoavelmente competente, faço aquilo que me é pedido, estou quando me chamam, sou pontual, pródigo, prolífico, cumpro prazos e funções, telefono, ironizo, compreendo, pontifico, cumprimento, vou ao cinema, atravesso no verde, mas assim como o poeta escreveu «era depois da morte herberto helder» também agora «é depois da morte pedro mexia», cadáver vem do latim cado, «caído», um cadáver, minha querida, é apenas uma coisa viva que caiu.

15.9.08

São umas pérolas que foram os seus olhos



Quando Pavese escreve para Constance Dowling (na foto) «verrà la morte e avrà i tuoi occhi» não são apenas os olhos dela que estão no poema, mas também os olhos de outras mulheres, acima de tudo os olhos «infiéis» de Tina Pizzardo 14 anos antes. E são também, tristes e desistentes («Those are pearls that were his eyes»), os olhos de Pavese.

O casamento

Marriage is tough, man. Marriage is real fucking tough. Marriage is so tough, Nelson Mandela got a divorce. Nelson Mandela got a fucking divorce. Nelson Mandela spent 27 years in a South African prison, got beaten and tortured every day for 27 years, and did it with no fucking problem. Made to do hard labour in 100-degree South African heat for 27 years, and did it with no problem. He got out of jail, after 27 years of torture, spent six months with his wife and said, «I can't take this shit no more!» (Chris Rock)

O blessed Solitude



But she thinks maybe
she could get to be tough and wise, some way,
anyway. Now at least
she is past the time of mourning,
now she can say without shame or deceit,
O blessed Solitude.


Os últimos versos de «A Woman Alone», de Denise Levertov, poema da sequência «Homage to Pavese» incluída na colectânea Life in the Forest (1978); a referência é ao romance Tra donne sole (1949), também adaptado ao cinema por Michelangelo Antonioni: Le amiche (1955).

Entourage

Dominique Fernandez, que escreveu um estudo importante chamado L’échec de Pavese (1968), diz que os grandes diários intimistas (de Amiel, Kafka, Pavese) servem aos seus autores como «defesa», «protesto», «refúgio», «vingança», «(...) et en même temps le moyen de parfaire leur autodestruction en les coupant peu a peu de leur entourage et en les rendant inaptes à la communication sociale». É que a «exposição» é uma forma de isolamento.

14.9.08

David Foster Wallace 1962-2008



É discutível se foi um grande escritor. É possível que fosse um génio. Herdeiro de autores exigentes como Joyce, Pynchon ou DeLillo, David Foster Wallace contribuiu para a apoteose da ficção enquanto enciclopédia. É verdade que nem toda a gente ficou convencida com os seus calhamaços cheios de erudição e ironia: James Wood, por exemplo, escreveu que não se ultrapassa o realismo abusando do realismo («storytelling has become a kind of grammar»); de todo o modo, a discussão sobre o que seja hoje «o romance» passa forçosamente por David Foster Wallace. Agora, já sem ele: Wallace suicidou-se ontem, na sua casa da Califórnia. Tinha 46 anos. A última colectânea de contos que publicou chama-se Oblivion.

12.9.08

E terá os teus olhos

Cesare Pavese nasceu há um século, a 9 de Setembro de 1908. E ainda hoje é impossível distinguir os seus livros e a sua vida. A angústia que se exprime naqueles romances pausados e brutais, naqueles contos suaves e desesperados, naqueles poemas narrativos ou estilhaçados, é uma angústia que traduz experiências vividas com uma intensidade feroz que não se esquece.

Pavese nasceu no campo e foi educado na cidade. Viveu fascinado pela terra e os camponeses, ao mesmo tempo que cultivava uma intensa ligação à vida citadina, colmeia de gente anónima entre arcadas e esplanadas. Órfão de pai na primeira infância e de mãe aos vinte e poucos, a infância é motivo recorrente nos seus textos. Desde pequeno que Cesare se revelou tímido e melancólico, e esse feitio como que justifica a lassidão entristecida das suas narrativas (às vezes rasgada por súbitas tragédias). Em matéria política sabemos que Pavese cresceu rodeado de amigos antifascistas mas sem vocação militante; já depois da guerra, sentiu uma espécie de remorso por não ter sido resistente e inscreveu-se no Partido Comunista. Sempre demonstrou grande empatia pelos operários e camponeses, nas suas dificuldades e na sua simplicidade. O campo, para Pavese, tinha aliás uma dimensão edénica. Ele dava grandes passeios ao domingo ao longo do rio Pó, nadava e remava, gostava da paisagem de colinas e vinhedos. Quando teve uma época de inquietação religiosa, viu na natureza a chave mitológica da realidade.
[...]

(no Público de amanhã)

Non è giusto restare sulla piazza deserta

9.9.08

Cesare Pavese (n. 9 Setembro 1908 - m. 27 Agosto 1950)



9 de Setembro [de 1939]
A guerra transforma os indivíduos em bárbaros porque, para a fazer, é necessário um endurecimento contra todo o lamento e afeição a valores delicados, é preciso viver como se estes valores não existissem; e, uma vez terminada, perdeu-se a elasticidade para a eles regressar.

9 de Setembro [de 1940]
Vejo a cena. Ela, volúvel, foge sempre à companhia; levanta-se da mesa, interrompe as conversas, vai ao telefone, etc., e, a quem lhe recorda os seus deveres, responde: «A culpa é tua, que não sabes interessar-me e fazer-me estar sentada».
Semelhante resposta pressupõe um endurecimento interior da adolescência, porque subentende que as coisas teriam podido correr de maneira diferente se o companheiro tivesse sido diferente. Equívoco que se faz quando se é adolescente, mas não mais tarde, quando se compreedeu que,
aconteça o que acontecer, é sempre nossa a culpa.

9 de Setembro [de 1946]
Pensa mal das pessoas, não te enganarás.

As mulheres são um povo inimigo, como o povo alemão.

Tem-se piedade de toda a gente - excepto dos que se aborrecem. E, no entanto, o tédio é considerado pena maior e o código ameaça-os com ela - a prisão.


[Já não houve entrada a 9 de Setembro de 1950]

(excertos de Il mestiere di vivere, 1952, edição port. Ofício de Viver, trad. Margarida Periquito, Relógio D'Água)

(imagens de Pavese no La Repubblica)

8.9.08

O tempo passa. É tudo. Compreenda quem puder. Eu desligo.

Time passes. That is all. Make sense who may. I switch off.

(as últimas palavras da última peça de Beckett, What Where, 1983)

Acho que percebem porquê

Gente imóvel que se movimenta apenas no «campo da memória» e cuja consciência se desdobra em várias vozes, se repete, se escrutina, se martiriza, numa coreografia elegante e num ritmo poético inpecável. É isso que eu gosto no teatro de Beckett, especialmente nas peças curtas. É isso que gosto no jogo do senhor e do escravo em Endgame, no passado revisto e comentado em Krapp, nas audições para um adultério em Play, nas três coscuvilheiras em Come and Go, na boca que engole toda a narrativa em Not I, naquilo que Amy viu em Footfalls, na velhice amarga em Rockaby, nas várias versões de uma história em Ohio Impromptu e no torturador que se tortura a si mesmo em What Where. Gente que se desdobra, se repete, se escrutina, se martiriza. Acho que percebem porquê.

Damiel

Damiel, que se tornou humano, diz no fim do filme: «Ich weiss jetzt, das kein Engel weiss», agora sei o que nenhum anjo sabe. E nunca uma frase foi tão luminosa. É que Damiel escolheu a sua queda. Já eu, que não escolhi, digo «agora sei o que só os anjos não sabem». E nunca uma frase foi tão negra.

Erros de tradução

Contam os jornais que a diferença entre «da Ossétia do Sul» e «na Ossétia do Sul» em dois documentos oficiais deu um conflito internacional. Como querias tu que erros de tradução muito mais grosseiros não dessem um conflito entre nós dois?

Que nojo, o povo (4)

Segundo uma tradição hostil à civilização, mais velha que Spengler, acreditamo-nos superiores ao outro continente porque este só teria produzido frigoríficos e automóveis, enquanto a Alemanha teria criado a cultura espiritual. No entanto, na medida em que esta se fixa e se torna um fim em si mesma, ela também tem tendência a desligar-se da humanidade real e de bastar-se a si mesma. Ao passo que na América até no ‘keep similing’ revela simpatia, compaixão, participação na sorte dos mais fracos. A enérgica vontade de estabelecer uma sociedade livre, ao invés de apenas pensar medrosamente na liberdade e, mesmo no pensamento, rebaixá-la a uma subordinação voluntária, não deixa de ser algo de bom só porque o sistema social impõe limites à sua realização. A altivez alemã contra a América é injnsta. Só serve, por abuso do que é superior, aos instintos mais rançosos.

O filósofo (marxista) Theodor Adorno, alocução radiofónica recolhida em Stichhworte, 1969 (citado a partir da tradução brasileira, ênfase minha)

Que nojo, o povo (3)

Não faz sentido identificar o «populismo» da direita europeia com o «populismo» da direita americana, como têm feito Vasco Pulido Valente e alguns blogues de esquerda. O «populismo» americano corresponde a determinados valores arreigados (religiosos, patrióticos, familiares), que se conjugam numa visão do mundo. O «populismo» europeu, do poujadismo às misérias lusitanas, é reactivo, inorgânico, oportunista. É uma táctica, não uma mundividência. É um desespero, não uma tradição.

Que nojo, o povo (2)

In Britain, the most snobbish attacks on Margaret Thatcher did not come from aristocrats but from the communist historian Eric Hobsbawm, who opined that Thatcherism was the ‘anarchism of the lower middle classes’ and the liberal Jonathan Miller, who deplored her ‘odious suburban gentility’.

Nick Cohen, no último Observer

5.9.08

Atlas ridículo

Aparece a indicação de que tenho a caixa de mensagens cheia. Apago algumas recentes e depois algumas antigas. E fico enojado com o que leio. Tenho o telemóvel cheio de mentiras. Um incomportável peso de mentiras escandalosas e reiteradas. Sou um Atlas que nem percebeu a sua ridícula situação. E sinto, como poucas vezes até hoje, uma profunda náusea.

4.9.08

Desacordo ou desencontro?

Ele diz que nós «discordamos» muitas vezes. Não é verdade; temos quase sempre opiniões parecidas. Acontece que ele é sentimental em matérias em que eu sou frio. E ele é frio em matérias em que eu sou sentimental. Não é um desacordo, é um desencontro.

Que nojo, o povo

Estive até às tantas a ver em directo a convenção Republicana, com se fossem uns óscares um nadinha mais importantes. Um congresso partidário revela sempre as convicções profundas daquele eleitorado, e as convicções profundas de um eleitorado são geralmente bastante caricaturais. A trilogia «guns, babies, Jesus» da grande parte do GOP não é decerto a última palavra em «sofisticação política», e seria impensável num partido da direita «mainstream» europeia; mas a América é o que é, e os discursos dos políticos vão ao encontro das convicções e instintos básicos dos seus apaniguados. E assim tivemos discursos de Romney (hipócrita e medíocre), de Huckabee (afável e «common people») e um colossal ataque de my man Rudy a Obama («change is not a destination just as hope is not a strategy»). Quanto a Sarah Palin, confirma-se a minha suspeita: é uma escolha irresponsável como vice-presidente e uma escolha brilhante como candidata a vice-presidente. A «hockey mom» alia uma agenda conservadora estrita (guns, babies, Jesus) a uma imagem dinâmica, reformista e anti-elitista. E isso talvez signifique milhões de votos na smalltown America. A convenção exibiu a retórica própria da direita americana (patriotismo, governo reduzido, family values), mas teve também nos discursos de Huckabee e Palin uma reivindicação da representação política do povo. Um «povo» que é geralmente esnobado pela tradição patrícia que existe nos dois maiores partidos americanos, e especialmente na aristocracia «East Coast» dos Democratas. Esse foi o aspecto mais interessante da convenção: um «povo de direita» que enfrentou o crescente snobismo social de esquerda. Um snobismo que nós também temos visto nos incríveis ataques «sociais» a Cavaco.

3.9.08

«Charlie Rose», by Samuel Beckett



Os bons espíritos encontram-se. A Charlotte postou ontem um youtube que eu também descobri ontem: Beckett talks. É uma raridade e uma alegria. O que talvez a Charlie e vocelências não conheçam é a peça inédita de Beckett Charlie Rose, interpretada pelo famoso entrevistador americano do mesmo nome.

O regime das relações sexuais

Engels, no segundo capítulo de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), confessa que não sabe como será o «regime das relações sexuais» depois da extinção do capitalismo. Prevê apenas o desaparecimento de dois aspectos nefastos que ele atribui ao actual sistema económico: a supremacia do homem e a indissolubilidade do casamento. A esse propósito, escreve o seguinte: «Se só o casamento fundado no amor é moral, também só é moral o casamento em que o amor se mantém. A duração do acesso de amor sexual individual, porém, é muito diversa segundo os indivíduos, nomeadamente entre os homens. E um positivo cessar da inclinação ou a sua suplantação por um novo amor apaixonado torna a separação um benefício tanto para ambas as partes como para a sociedade. Poupe-se apenas às pessoas o terem de atravessar o lixo inútil de um processo de divórcio» (cito a tradução das Edições Avante!). Engels não questiona portanto que «só o casamento fundado no amor é moral». Mas o que significa «moral» neste contexto? Moral de acordo com que moralidade? A socialista? Mas existe uma moral sexual socialista? E, havendo, porque exige que o «amor» seja um requisito do casamento e o fim do «amor» uma condição do divórcio? Admito que uma noção puramente «contratual» do casamento parecesse a Engels uma ideia excessivamente «liberal», mas então o que dizer da noção de «amor», imaterial e individualista como nenhuma outra? E depois, se a «supremacia do homem» se deve ao capitalismo, em que medida é que a «duração do acesso de amor sexual» (que tradução trapalhona) não é uma característica socialmente condicionada, que pode ser ultrapassada quando for eliminado o sistema actual? Ou o capitalismo tem culpa de tudo menos da promiscuidade masculina?

2.9.08

As fábulas de LaFontaine



Morreu aos 68 anos Don LaFontaine, que tenho a certeza que conhecem do trailer de The Elephant Man, ou do trailer de Batman Returns, ou do trailer de Fatal Attraction, ou do trailer de The Godfather, Part II, ou do trailer de The Terminator. A sua voz grave e ominosa (não sei se natural ou de tabacos e álcoois) fez história. LaFontaine era a voz mais conhecida do cinema americano, embora passasse incógnito na rua. Sempre muito solicitado, gravou milhares de promos e anúncios. Fazia-se pagar bem e viajava de limousine. Eu, que adoro trailers mas tenho uma voz galinácea, chegava a casa nos anos 1980 e tentava ao espelho aquele baixo profundíssimo, nomeadamente o tão parodiado «In a world...», etc. Se o trailer enquanto «género» já é um admirável exercício narrativo de contenção, então LaFontaine dava ainda mais profundidade a essa característica, teatralizando os seus dois minutos como um adulto que conta historinhas aos filhos. É também isso o cinema: uma fábula.

1.9.08

Sem excepção

dado que: da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA

Mário Cesariny

Shadayim

JEFF: Women think we are normal. Like them. Coz we talk to them like normal people. We say «Hello», «How are you», «Haven't seen you in this place before», «What kind of music do you like? hoha..». But all the time in our brains we've got the word «breasts» on a loop. If we ever lost control for a second, we'd all start shouting «breasts, breasts, breasts», «breaastsss».

Richard Coyle em Coupling, série 1, episódio 5 (2000)