29.11.06

TLEBS

Estou aqui com uma vontade de usar um modificador preposicional do nome apositivo que nem vos conto nem vos digo.
Amanhã, dia 30 de Novembro, a Casa Fernando Pessoa assinala o seu 13º aniversário. Há festa desde as 14h30. Depois do jantar, a partir das 21h30, vão estar na Casa, para lerem textos seus, Manuel António Pina, Pedro Mexia, José Luís Peixoto, Luís Quintais, José Eduardo Agualusa e José Tolentino Mendonça. Depois, ainda, haverá uma ceia. Pelo meio, estarão abertas todas as salas da Casa Fernando Pessoa (poderá ver o original do retrato de Pessoa por Almada Negreiros, na Biblioteca, por exemplo, bem como visitar a biblioteca pessoal do poeta), além do jardim – tudo para visitar. Distribuídas pelos quatro pisos estarão as fotografias da Kameraphoto bem como objectos pessoais & manuscritos dos poetas convidados neste dia. Haverá música, a Rua Coelho da Rocha vai estar iluminada de maneira especial, e todos os visitantes terão direito a um presente de aniversário da Casa. Entrada livre, naturalmente.

Consolar os aflitos

Hoje, no Público, a propósito do título da peça de Pirandello Vestir os Nus (1922), são recordadas as «sete obras de misericódia corporal» e «as sete obras de misericordia espiritual», que eu não ouvia nem lia desde a catequese:

dar de comer a quem tem fome
dar de beber a quem tem sede
vestir os nus
dar pousada aos peregrinos
visitar os enfermos
visitar os prisioneiros
enterrar os mortos
corrigir os que erram
ensinar os ignorantes
dar bom conselho
consolar os aflitos
sofrer com paciência as fraquezas do próximo
perdoar as injúrias
rogar a Deus pelos vivos e defuntos


A Igreja Católica tem muitíssimo jeito para isto: transformar o legislativo em poético. Isto é, desculpem lá, um belíssimo poema. Não consigo imaginar nenhum verso mais bonito que este:

consolar os aflitos.

O cão branco



Só vi uma vez, e na televisão, um dos menos conhecidos e mais caluniados filmes de Samuel Fuller, o «racista» White Dog (1982), a história de um pastor alemão branco que foi treinado para atacar pretos. Só uma leitura desonesta (influenciada pela fama de Fuller como «reaccionário», que se baseia sobretudo num filme anticomunista, aliás excelente) é que não percebe que Fuller denuncia e investiga o condicionamento que preside ao racismo, não nos cães mas nas pessoas.

O que eu não sabia é que o filme é adaptado do livro de memórias homónimo (1968) do romancista francês Romain Gary, que foi casado com a actriz Jean Seberg. O cão do título pertencia ao casal, quando eles viveram em Los Angeles. A certa altura, eles descobrem que o cão foi programado desde pequenino a reagir violentamente a negros. Coisa especialmente problemática visto que Seberg era activista dos Black Panthers. O cão teve que ser abatido, e Gary conta a história quer como retrato dos Estados Unidos quer como mais um elemento de tragédia na vida deste casal infeliz (tanto um como outro se suicidaram). Considerado demasiado polémico, White Dog nunca estreou comercialmente nos Estados Unidos.
A TV tal como a conhecemos acabou? O que vai mudar na produção contemporânea de conteúdos audiovisuais numa altura em que a tecnologia nos abre novas possibilidades a cada dia? São estas perguntas que servirão de mote para o É a Cultura, Estúpido! de hoje, logo ao fim da tarde (18h30), no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa. Os convidados, Manuel Falcão (ex-director da 2:) e Francisco Rui Cádima (professor universitário), respondem aos reptos de Nuno Artur Silva, Pedro Mexia e Nuno Costa Santos. A rubrica «Relatório do Mês», com sugestões culturais, ficará a cargo de Daniel Oliveira e José Mário Silva.

O caso Richards

Cito o Público de anteontem: Sexta-feira à noite, 17 de Novembro, Los Angeles. Michael Richards estava a desenrolar o seu número de stand-up comedy no clube de comédia Laugh Factory. Um grupo terá começado a gritar para o palco, dizendo que o comediante não estava a ter piada. No vídeo que circula na Internet não são visíveis as provocações, mas apenas a reacção do cómico, que lhes dá resposta com a frase "Calem-se! Há 50 anos punhamo-vos de cabeça para baixo com uma merda de uma forquilha pelo rabo acima!", aludindo aos tempos da escravatura negra e aos linchamentos. "Ponham-no na rua, ele é um preto (nigger). Ele é um preto! Ele é um preto!", continuou. Há alguns risos entre a plateia, mas também um espectador sonoramente incomodado. Richards reage também ao "ooh" indignado: "Muito bem, vêem, isto choca-vos". Quando o visado pelos primeiros insultos diz que as palavras com carga racial eram desnecessárias, Richards responde-lhe, irritado, que "o que é desnecessário é interromperem-me!" O dono do clube baniu Richards do palco até que ele se desculpasse publicamente. Mas só depois do vídeo, captado por um telemóvel e reproduzido pela TMZ.com, ter sido exibido por muitos programas de televisão e sítios na Internet entre domingo e segunda-feira.


Eis o vídeo:



Como explicar isto? Michael Richards (o «Kramer» de Seinfeld), no seu pedido de desculpas televisivo, disse que não sabia de onde vinha toda aquela hostilidade. O mesmo tinha dito Mel Gibson, quando se soube que tinha proferido insultos anti-semitas (embora no caso de Gibson isso tenha antecedentes conhecidos).

Mas, de facto, de onde vem aquela hostilidade? Temos todos atitudes agressivas de vez em quando, mas como vem ao de cima esta demência racista (especialmente tresloucada, no caso de Richards), em pessoas que não conhecíamos (e que talvez não se conhecessem a elas mesmas) como racistas? Não sei se o racismo é um «instinto» ou apenas uma «ideologia». A verdade é que ele existe mesmo em pessoas que racionalmente não são nada disso. Há um exemplo famoso: Elvis Costello, cujo currículo progressista é inquestionável, teve uma cena parecida com um grupo de negros, depois de um espectáculo, e também disse que não soube de onde é que aquilo vinha (alegou que estava bêbedo).

Todos (ou quase) todos nós dizemos que não somos racistas, mas em situações de tensão tenho ouvido explosões virulentas a pessoas supostamente insuspeitas. E isso é mais assustador que o racismo dos tarados ou criminosos nazis. Isso significa que uma pessoa pode ter dentro de si aquelas sombras (ou outras) sem ter consciência disso. O vídeo de Michael Richards é bastante impressionante, mesmo tendo em conta a sua natural exuberância, que já conhecíamos. Todos temos coisas em nós que reprimimos, muitas vezes porque as condenamos, outras vezes porque a sociedade as condena. Mas basta um acesso de cólera para a agressividade tomar estas e outras formas (que neste caso é capaz de ficar como um mancha inapagável na imagem do comediante).

Sabemos muito pouco sobre nós mesmos. Essa é a triste condição da nossa espécie.

Música ligeira

«La la la la» é uma fórmula depreciativa para caracterizar toda a espécie de «música «ligeira»; coisas que entram no ouvido e são aleatórias e descartáveis. Mas sugiro que ouçam a junkie teutónica Nico a cantar um «la la la la» no tema «It Has Not Taken Long» do álbum The End (1974). E depois digam se não é a coisa mais arrepiante do mundo.

O terror e a vergonha

Não perguntem porquê, mas acabei por ver Massacre no Texas: O Início, prequela de um dos remakes (é isso mesmo) do célebre The Texas Chainsaw Massacre (1974), que já gerou também várias sequelas. O filme é mau e previsível: miúdas e miúdos atraentes perdidos na América profunda e retalhados por um homicida louco (neste caso, vários). É a enésima versão deste argumento, que vale pelo desempenho de um dos vilões (o veterano R. Lee Ermey) e pelo rabo fantástico de Jordana Brewster.

Eu gosto de filmes de terror, embora raramente apareça um filme de terror de que goste. Não sou é adepto desta recente tendência «gore», que nos deu coisas como Saw, Wolf Creek ou o abominável Hostel. Estou cansado de entranhas e degolamentos e amputações.

Numa crítica que li a Massacre no Texas (no site A.V. Club), é sugerido que esta vaga de representação gráfica da tortura tem causas externas: «almost as if torture had become some kind of national anxiety». Comentário seguido desta pergunta sardónica: «But that couldn’t be the case, could it?».

Os filmes de terror sempre espelharam as angústias de cada década. E se o cinema «gore» tem antecedentes consideráveis, é verdade que a tortura se tornou actualmente um assunto quase trivial, graças a Guantanamo e outros abusos mediatizados. Eu, como americanófilo que sou, sinto vergonha.

28.11.06

Simão do Deserto



Gostava de ser um estagirita, como o Simão do filme de Buñuel. Estar fora do mundo, alto no cimo de uma coluna. O único problema é que tenho vertigens.

A exposição

Que eu me «exponho». Grande incómodo nas galerias. E no entanto, muitos dos protestantes não sabem nada de nada de nada sobre mim, por mais que eu pendurasse as tripas em trezentos textos. Não sabem nada de mim. Nada. Nadinha. A ponta de um corno. Que «exposição» tão incompetente.

Os malucos (3)

I said first a suicide without a note
And now a note without a suicide


(The Throwing Muses)

Os malucos (2)

Ouço o primeiro album de Throwing Muses, de 1986, e vejo que já lá estão as mudança de velocidades que os Pixies supostamente inventaram e que os Nirvana efectivamente celebrizaram. Eu adoro os duendes do senhor Black, mas a verdade é que em 86 o senhor Black ainda não estava no activo. O mérito deve então ser atribuído ao agrupamento de Kristin Hersh. Alguma novidade elas (e ele) deviam trazer para que Ivo Watts-Russell abrisse uma excepção e acolhesse uma banda americana na muito britânica 4AD.

No entanto, as inesperadas (e às vezes estapafúrdias) alterações nos tempos musicais não são apenas uma estratégia musical. Hersh era maníaco-depressiva, e sabia bem o que são flutuações súbitas e às vezes violentas.

Agora que penso nisso, uma das canções mais conhecidas dos Nirvana tem um nome associado ao tratamento da doença bipolar: o lítio.

Isto dos malucos tem muito que se lhe diga.

Os malucos (1)

Tenho uma relação dual com isto de ser maluco. O lado positivo é a imunidade. O lado negativo é que é uma espécie de morte a crédito.

Groovy



So it’s rorschach and prozac and everything is groovy (Nick Cave)

NOTA: já apareceu o texto sobre Cave, à atenção do Tiago Cavaco

Ou uma coisa assim

Cities at night, I feel, contain men who cry in their sleep and then say Nothing. It’s nothing. Just sad dreams. Or something like that... Swing low in your weep ship, with your tear scans and your sob probes, and you would mark them. Women – and they can be wives, lovers, gaunt muses, fat nurses, obsessions, devourers, exes, nemeses – will wake and turn to these men and ask, with female need-to-know, ‘What is it?’ And the men say ‘Nothing. No it isn’t anything really. Just sad dreams.’

Just sad dreams. Yeah: oh sure. Just sad dreams. Or something like that.


(o começo de The Information (1995), de Martin Amis, um dos meus inícios favoritos)

A pergunta «como estás»

Ontem à noite, por volta das 23, todo o meu quarteirão ficou sem luz por causa do mau tempo. Sem luz, não podia fazer nada em casa. Absolutamente nada. Ainda esperei um bom bocado, mas como a luz não voltava, fui dormir, cedíssimo para os meus hábitos. Sem luz não posso fazer nada.

O sublime insubmisso

O surrealismo português chegou tarde, como quase todas as nossas importações intelectuais. Surgiu nos anos 40, num meio literário grandemente dominado pelos neo-realistas. Mário Cesariny, nos seus poemas e polémicas, combateu esse «realismo» estreito e dogmático, ao mesmo tempo que reabilitava o «real quotidiano» (que não confundiu nunca com a trivialidade). Foi o nosso único grande surrealista (não creio que Alexandre O’Neill fosse genuinamente surrealista, embora também fosse um poeta notável).

Cesariny levou muito a sério aquela ideia de Breton (que retomava Rimbaud) segundo a qual era preciso não apenas mudar a sociedade mas também mudar a vida. Uma noção altamente romântica da poesia, como que compensada pela vertente mais satírica. Os poemas de Cesariny são umas vezes sublimes e outras vezes divertidíssimos (e algumas vezes as duas coisas em simultâneo). Foi um dos poetas que levou Pessoa mais a sério e menos a sério, e com ele estabeleceu um espantoso (e sarcástico) diálogo textual.

No campo estritamente surrealista, Cesariny usou técnicas como o inventário e a associação livre, e recuou mesmo atrás, ao letrismo, com jogos silábicos e outras desconstruções. Além disso, nunca esqueceu a revisitação do cânone nacional, dos cancioneiros a Pascoaes, com pastiches, homenagens ou paródias. A componente «realista» seguia bastante Cesário, com alguns inesquecíveis poemas lisboetas.

Mas Mário Cesariny foi sobretudo um insubmisso. Combateu a ditadura intelectual das esquerdas e a ditadura política das direitas, usando a subtileza ou a farsa mais desabrida. Como bom surrealista, tinha grande talento para o panfleto, e o volume As Mãos na Água a Cabeça no Mar (2ª edição, 1985) recolhe textos importantes. A insubmissão de Cesariny era também comportamental: homossexual e libertário, viveu literalmente policiado por causa dos seus costumes, e no meio disso escreveu algumas das mais notável poesia homoerótica portuguesa (os Poemas de Londres são disso testemunho). Tinha também a teatralidade mediática dos surrealistas, dos lançamentos de livros transformados em bailes às declarações inconvenientes.

Ele acreditava numa poesia da transfiguração, ligada às coisas mais concretas e mais viscerais, mas quase espiritualizada numa alquimia do verbo, na articulação do verso, na sintaxe e no vocabulário insólitos. Nas últimas décadas, abandonou a poesia pela pintura, e infelizmente não existe nenhuma edição dos poemas completos, mas apenas sucessivas reedições modificadas de livros ou secções de livros. Os poemas reunidos e definitivos de Mário Cesariny ficarão como um dos dez ou doze momentos excepcionais de um século excepcional na poesia portuguesa.


(texto publicado ontem no Diário de Notícias)
Tenho o correio ainda mais atrasado do que é costume, e com vários mails (simpáticos ou curiosos) que merecem resposta. Peço desculpa pelo atraso, vou responder a grande parte deles.

26.11.06

The Misfits



Este post lembrou-me este diálogo de um dos meus filmes favoritos:

GAY: What makes you so sad? You're the saddest girl I ever met.

ROSLYN: You're the first man who's ever said that. I'm usually told how happy I am.

GAY: That's because you make a man feel happy.

ROSLYN: I don't feel that way about you, Gay.

GAY: Don't get discouraged girl, you might.


(The Misfits, John Huston, 1961, escrito por Arthur Miller)

As lágrimas

Qualquer coisa como isto: «As lágrimas que chorámos hoje serão apagadas pelas lágrimas que choraremos amanhã».

Password

Deram-me uma password (não fui eu que escolhi). Era (quase não queria acreditar) o teu nome. E assim todos os dias escrevo o teu nome. Como aliás já fazia há algum tempo.

Mário Cesariny, 1923-2006



Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?

25.11.06

A morte e o lixo

Vim aqui publicar alguns posts sobre telemóveis e filmes e angústias amorosas e dou com esta notícia brutal: morreram várias pessoas na queda de uma avioneta no sul do Chile. Quatro eram portugueses. Desses quatro, três eram jornalistas. Desse três, uma era jornalista do Diário de Notícias. Chamava-se Maria José Margarido. Eu não conhecia exactamente a Maria José, visto que nunca conversámos, mas há anos que a via e ouvia no DN, dizíamos boa tarde nos corredores e uma ou duas vezes almoçámos na mesma mesa, com mais pessoas. Tínhamos a mesma idade. E foi um choque tão grande como se a conhecesse. Estes acidentes acontecem tantas vezes, mas nunca tinha morrido ninguém que eu tivesse conhecido, ainda que de vista. E os telemóveis, os filmes, as angústias amorosas, tudo fica lixo no mesmo segundo em que leio a notícia.

A parte mais triste

The saddest part of a broken heart
Isn't the ending so much as the start


(Feist)

Half a person

Um homem que fracassa enquanto homem fracassa enquanto pessoa. Ou talvez seja a «cultura dominante» que nos inculca isso, não sei e tenho raiva a quem saiba. A verdade é que depois disso é impossível continuar a ter algum respeito por essa pessoa. E isto inclui, naturalmente, o próprio.

O meu melhor

Em quase todas as derrotas, não me empenhei o suficiente. E houve até derrotas que procurei, de tanta falta de empenho. Intempestivo e angustiadamente displicente, como se isso afinal de contas não fosse importante. Mas quando damos tudo, como no poema de Yeats («Never give all the heart»), e falhamos, quando damos o nosso melhor e o nosso melhor não chega, é impossível continuar tudo como dantes, não extrair conclusões, não tomar decisões, não ter algumas dúvidas que são certezas. Quando o nosso melhor não chega, nada disto vale a pena.

Harper Lee

Os dois filmes quase simultâneos e quase iguais sobre Truman Capote (um preocupado com a ética da literatura, outro com a paixão inconfessada), deixaram-me curioso acerca de Harper Lee, a amiga de infância de Capote, que o acompanhou durante uns tempos na estadia no Kansas, na recolha de material para In Cold Blood.

Interpretada por uma óptima actriz (Catherine Keener) em Capote, e por uma péssima actriz num momento óptimo em Infamous (Sandra Bullock), aquele companheirismo fiel, aquela tristeza desalentada, despertaram em mim um certo fascínio. Harper Lee, que ainda é viva (nasceu em 1926), só escreveu um romance, um sucesso colossal (que nunca li). Nestes seus retratos existe uma melancolia estóica e sulista que me cativou. Vou ler To Kill a Mockingbird e depois digo coisas.

Celular

Em The Departed (embora não seja o primeiro filme em que isso acontece) podemos ver como o telemóvel mudou imensas coordenadas espaciais, temporais e narrativas no cinema (tal como nas nossas vidas). O contacto, a mobilidade, a velocidade, tudo se altera com a introdução do telemóvel (sobretudo em filmes de acção, que implicam gente nas ruas, em movimento). Mais tarde ou mais cedo, algum erudito de Princeton tem de escrever um ensaio sobre o assunto.

O regresso de Scorsese

É possível achar que The Departed é demasiado tarantinesco (americano copia oriental que copiou americanos), que é excessivamente sanguinolento, que Jack Nicholson é (como de costume) insuportável e que os últimos 20 minutos são um desastre. Só não é possível contestar a soberba montagem da fiel Thelma Schoonmaker e os óptimos diálogos javardos do para mim desconhecido William Monahan, que põe toda a gente a falar como personagens de David Mamet. Já não havia um Scorsese assim desde 1995.

Zelig

Todos mudamos, ao longo do tempo, de acordo com as nossas experiências de vida. Mas eu temo acima de tudo as pessoas que mudam subitamente, nas atitudes, na linguagem, na visão do mundo; sobretudo quando se trata de uma mudança camaleónica, um adequamento a novas companhias ou a novas ambições. Às vezes quase se transformam nos seus novos camaradas, numa espécie de empatia malsã. A personagem que mais me assusta não é o Freddy Krueger: é o Zelig.

Ladies and gentlemen

Micah P. Hinson, nos agradecimentos incluídos no seu último disco, manifesta grande apreço «to everyone who lets me into their lives through my songs». E acrescenta: «you are all very valuable, ladies and gentlemen». Em momentos sombrios devemos agradecer aos fiéis. Sois muito valiosos, senhoras e senhores.

Temporal

As janelas fechadas, os estores descidos, a música ligada, o temporal é como se não existisse. Nem sequer vejo a chuva na televisão, só ouço a chuva, caindo como se não houvesse amanhã. O temporal veio desfasado. Eu sou imune ao inverno. As minhas tempestadas são sempre de verão.

O outro Nick

Quando começei a ouvir Nick Cave, nos final dos anos 80, não sabia se gostava daquilo. Não apreciava especialmente o punk «artístico» underground. Mas reconhecia nele algumas afinidades obscuras com Leonard Cohen (eu ainda não conhecia Scott Walker) e uma atracção pelos blues mais terríveis (aqueles com violência e obsessão sexual) que me interessavam. E nessas letras negras (com acompanhamentos ainda mais negros) também comecei a detectar ideias e imagens que eu compartilhava desde sempre (o pecado, a morte, a vingança, o cativeiro). Imagens bíblicas, sem dúvida nenhuma. Uns anos mais tarde descobri um texto de Cave em que ele explica essa influência: «The Flesh Made Word», que ele leu aos microfones da BBC3, em 1996.

Nick conta que teve uma educação literária (o pai tinha ambições de ficcionista e uma boa biblioteca) e religiosa (foi literalmente um menino de coro). Como acontece com os adolescentes, foi depois ficando mais distante da religião, e sobretudo distante daquele Deus oferecido pela religião organizada (um cristianismo como e com «jurisprudência», escreve). Quando estudava Artes, cultivou no entanto um fascínio pela iconografia religiosa (tinha imagens de Fra Angelico na parede e tudo), coisa que aborrecia os seus professores. E acabou por comprar uma Bíblia (a famosa King James Version). No texto, conta como reencontrou na Bíblia histórias que estavam no seu consciente e no seu subconsciente. Aquilo que o atraiu primeiro foi o Antigo Testamento: « (...) a prosa dura do Antigo Testamento, uma linguagem perfeita, ao mesmo tempo misteriosa e familiar, que não apenas reflectia o meu estado de espírito na altura mas que enformou as minhas intenções artísticas». Esse Deus cruel e brutal fazia muito sentido para o jovem revoltado e tumultuoso. Nick diz mesmo que Deus falava através dele. E acrescenta: «and his breath stank». Depois, no Novo Testamento, encontrou um outro Deus, desta vez de carne e osso («a palavra que se fez carne»), mas um Deus que se mostava igualmente implacável para com os escribas, os fariseus e os outros «inimigos da imaginação». É isso que Cave vê em Deus e na pessoa de Jesus: uma linguagem e uma imaginação, que são uma espécie de corrente espiritual que se produz na comunhão. Uma comunhão que, no seu caso, tomou a forma de música. É que o criador necessita que a criatura também exerça a sua imaginação: «Através de nós Deus encontra a Sua voz, porque, tal como nós precisamos de Deus, Ele também precisa de nós».

24.11.06

Nick Drake



A seguir aos mestres (Dylan e Cohen), Nick Drake é o meu compositor folk favorito. Deixou apenas três álbuns completos, dois mais orquestrais, pastorais, ornamentados, melancólicos; e um isolado e terminal. Todos os títulos nos dizem alguma coisa:




Five Leaves Left (1969): uma referência mais imediata a um anúncio de uma marca de papel para enrolar tabaco (ou outras coisas que Nick fumava), mas também uma imagem do fim do outono e do início do inverno



Bryter Layter (1970): corruptela de uma expressão usada nos boletins meteorológicos: «brighter later», com intenção talvez irónica, embora o álbum seja realmente mais animado que os outros dois



Pink Moon (1972): símbolo (algo psicadélico, como se vê pela capa) da doença mental e da morte, no seu álbum mais acústico e desolado.

Nick Drake nasceu numa família de classe média-alta, na Birmânia (onde o pai era engenheiro) a 19 de Junho de 1948. Doentiamente tímido e introspectivo, Nick entrou em depressão severa a partir de 1971, com internamentos, acompanhamento psiquiátrico e medicação. Morreu na noite de 24 para 25 de Novembro de 1974, em casa dos pais, na vila de Tanworth-in-Arden, com uma overdose de antidepressivos. Tinha 26 anos.

23.11.06

Sobre a infelicidade

Há um óptimo conto tardio de Tchékhov, «Groselhas» (1898), que é considerado por alguns o seu melhor (o que me parece exagerado) e por outros um texto algo moralista (o que não tem nenhum fundamento). Em «Groselhas», Ivan, um homem de meia-idade, conta a dois amigos a história do seu irmão, Nikolay, que encontrou a felicidade como proprietário agrícola. Ivan não compreende essa opção do irmão citadino pelo exílio campestre; mas sobretudo duvida dessa noção de «felicidade». Mais: sente-se sufocado pela ostensiva felicidade das pessoas num mundo onde prevalece «a insolência e indigência dos fortes» e «a ignorância e a bestialidade dos fracos». Num mundo cheio de miséria física e moral, a mesma que depois lemos calmamente nas estatísticas (tantos mortos, tantos loucos, tantos esfomeados). E no entanto, diz Ivan, toda a gente parece hipnotizada: «Vemos pessoas que se abastecem no mercado, que comem de dia, que dormem à noite, que dizem os seus inúteis disparates, que se casam, que envelhecem, que acompanham serenamente os seus mortos ao cemitério; mas não vemos nem ouvimos os que sofrem, e aquilo que é terrível na vida decorre atrás das cortinas». Ivan percebe que sem esse pacto de silêncio ninguém conseguia ser feliz. Mas também desejava que houvesse, à porta das pessoas felizes, um homem com um martelo, um homem que fosse martelando e recordando aos felizes a infelicidade que existe no mundo. Uma infelicidade que, quando nos toca, abafamos. E que, quando a vemos nos outros, ignoramos. Uma infelicidade que, mais tarde ou mais cedo, vem bater com o seu martelo à nossa porta.

Os amigos exaustos

Better endings are what we have now
Weary friends keeping good on a vow
But there is a part of me still
telling me to go when the feelings arise

(Nina Nastasia)

Dolorosamente (2)

Ou então, aquele verso, acho que de uma canção dos Bauhaus: «playing games with his pain».

Dolorosamente (1)

Naquilo que escrevo, procuro aquela expressão inglesa que se pode traduzir como «dolorosamente honesto».

22.11.06

Y

Acho absolutamente natural que alguém que tem dois cromossomas X queira um bocadinho de cromossoma Y. Eu devia ter sido mais honesto acerca do meu genoma.

A carícia recusada

Leio num ensaio do filósofo Roger Scruton esta passagem: «A caress may be either accepted or rejected: in either case, it is because it has been ‘read’ as conveying a message sent from you to me. I do not receive this message as an explicit act of meaning something, but as process of mutual discovery, a growing to awareness in you which is also a coming to awareness in me». Isto explicado assim ainda dói mais.

O cinismo

Não aprecio o cinismo, excepto nalguns escritores especialmente dotados, ou então, no quotidiano, como exercício de estilo para espantar os chatos. Mas o cinismo, em mim, é uma reacção pouco natural. Usei algumas vezes o sarcasmo, mas acho que fui cínico pela primeira vez aos 20 anos, num fim de tarde de que nunca me esqueço (em que ouvi uma frase inédita: «não sejas cínico»). Depois disso, tenho evitado sempre o cinismo, que é muito atraente mas muito pouco sadio. No entanto, não consigo evitar ser cínico quando vejo acontecerem coisas (negativas) previsíveis. Coisas que eu sabia que iam acontecer exactamente assim. Nessas casos, sou cínico, cínico para mim mesmo, como quem diz a si próprio: «eu não te dizia?»

Sociologia

Com poucas excepções, os meus fracassos amorosos eram absolutamente previsíveis por um sociólogo. Ou, dito de outro modo, por quem visse as coisas do lado de fora.

Sincerely, L. Cole

Ontem, no concerto de Lloyd Cole, na Aula Magna, eu devia ser dos espectadores mais novos e dos poucos sem filhos. Cole, acompanhado apenas pelo fiel Neil Clark, fez um «best of» acústico (de 1984 até agora), que mostrou o seu catálogo esplêndido: basicamente canções de amor e de maturidade. No primeiro caso, tivemos «Perfect Skin», «Rattlesnakes», «Cut Me Down», «Jennifer She Said», «No Blue Skies», «Butterfly», «Like Lovers Do» ou «No More Love Songs» [yeah, right]. No segundo caso, algumas vinhetas delicadamente sarcásticas, como os temas dos álbuns Music in a Foreign Language (2003) e Antidepressant (2006). O All Music Guide descreve assim este último: «In Cole's thinking, while it's true that an anti-depressant can make you feel better, the simple fact that you need one makes clear the appearance of depression».

Cole, um «esplêndido quarentão», teve a melhor tirada da noite quando disse que via muitos casais na plateia e sabia que um dos membros do casal vai sempre contrariado aos concertos, para acompanhar o outro; e agradeceu aos contrariados por terem ido mesmo assim. Quanto ao mais, já sabíamos que as canções de Lloyd (literatas, irónicas, lascivas ou melancólicas) estão entre o mais consistente que a música popular produziu nas últimas décadas. Esperemos que não sofra a maldição de ficar como um gosto «geracional». Seria muito injusto.
Alguns acrescentos na lista de links: Escrito a Lápis, Kontratempos e Pastoral Portuguesa.

Robert Altman 1925-2006



No último filme de Robert Altman, A Prairie Home Companion (2006), Virginia Madsen, de gabardine branca, é o anjo da morte que vigia o espectáculo final de um programa de rádio ao vivo. No fim do filme, ela avança para um grupo de pessoas, sem sabermos bem qual delas veio buscar. Veio buscar Altman.

Altman não é um dos meus cineastas de eleição (mas também fez tantos filmes que tenho imensas lacunas); mas representou a ideia do autor inconformado, iconoclasta, conflituoso, muitas vezes passando por fracassos comerciais e estéticos, que são coisas que acontecem a todos os artistas e de que ele nunca teve medo.

O seu filme que mais me marcou foi Short Cuts (1993), por causa do universo de Raymond Carver e daquele entrecruzar triste e perseverante e cacofónico das vidas comuns que Altman sabia filmar tão bem.

Espero que esteja com Virginia Madsen. Ou alguém como ela.

21.11.06

Orphans



Nas lojas desde ontem, Orphans, 56 (cinquenta e seis) canções antigas que Tom Waits tirou da arca. De que é que estão à espera?

Nocturnos

Tom Waits é um génio. Um génio musical, naturalmente, mas que deve muito à sua teatralidade e a alguns elementos literários.

Musicalmente, Waits é um sorvedouro de influências, sobretudo dos discos que ouviu em criança (nasceu em 1949 e diz que «dormiu através dos anos 60»). Ele toca jazz, blues, baladas, rumbas, música de cabaré, folk, lounge, ópera, rock, gospel e tudo o que meta pianos, harmónios ou trombones. Ele é Cole Porter, Randy Newman, Kurt Weil, Ray Charles e Bob Dylan e mais ainda. E depois tem aquela voz cavernosa, cheia de álcool e nicotina, que (como alguém escreveu) parece que grava discos com microfones cada vez mais manhosos.

A «persona» Tom Waits é inseparável disto. Ele é realmente um grande personagem: de ascendência escocesa e irlandesa, Tom nasceu em subúrbios, filho de pais divorciados, foi boémio, andou com literatos maltrapilhos e com Frank Zappa, viveu no Tropicana Motel em West Hollywood, namorou com Rickie Lee Jones, fez filmes com Coppola e Jarmusch, está casado há vinte e tal anos com Kathleen Brennan, tem três filhos. Nalguns álbuns, como Nighthawks at the Diner (1975), e em quase todas as entrevistas, conta histórias, anedotas, desconversa, inventa a sua biografia, protege a sua intimidade, é desconcertante, usa barbicha e chapéu como se fosse (e é) doutro tempo.

E depois, há as letras de Waits. São muitas vezes pequenas narrativas, episódios tragicómicos com bêbedos, vagabundos, prostitutas, gangsters, gente do circo, empregadas de mesa. Coisas de bares em hora de fecho, de luas e sarjetas, de postais e comboios. É a «small town America« (mesmo quando tudo acontece no meio de «big towns»), cheia de desconhecidos, marginais, românticos fracassados. Um mundo que tem referências visuais reconheciveis (algum Hopper, muito Robert Frank) mas sobretudo literárias. Waits insiste que só lê «menus e revistas», mas os seus textos prosseguem uma tradição dos cronistas melancólicos ou ácidos do sonho americano quando este se torna pesadelo ou sono agitado: Steinbeck, Runyon, Kerouac, Carver, Bukowski. Ele não os imita, mas partilha bocados destes universos, mesmo que os tenha lido apenas em revistas e menus.

Os seus primeiros discos (estreou-se em 1973) são mais confessionais, característica que foi sendo menos óbvia com o decurso do tempo, mudança que ele atribui à sua experiência como actor, que o fez imaginar melhor coisas que não conhece. Mas em quase todos os casos, as canções de Waits provêm da sua memória e da sua experiência. Sobre a memória, disse uma vez que funcionava como um loja de penhores, um aquário e uma despensa. Sobre a experiência, conta que ele é uma espécie de detective que observa as pessoas e as usa como metáforas para outra coisa. Waits nunca é verdadeiramente feroz, apenas irónico ou sarcástico; mesmo as suas evocações de «cerveja morna e mulheres frias» transpiram compaixão e dignidade humana.

Há letras inesquecíveis no catálogo Waits, como «Soldier’s Things», um inventário que tem a força de um poema épico. E há momentos como «Time» (do álbum Rain Dogs, 1985): «O dinheiro fino está em Harlow / E uma lua corre pela rua / Os putos da sombra quebram todas as leis / Bem para lá de East St. Louis / Enquanto o vento faz discursos / E a chuva tomba como uma salva de palmas / Napoleão chora no parque de divertimentos / A sua noiva invisível está no espelho / A banda regressa a casa / Enquanto a chuva cai a cântaros / E a verdade é que já não há nada aqui para ele». E o refrão diz que é o tempo, o tempo, o tempo, o tempo que tu adoras, e depois ainda há orfãos fingidos, ligaduras, orações, garotas de calendário, navalhas. E o poema acaba: «Põe então uma vela na janela / E um beijo sobre os lábios / Até que o prato na varanda transborde de chuva / Como a semente que um estranho te lançou no coração / E não te esqueças de pagar ao tipo do violino / Até ao dia em que eu regressar».

A tradução é de João Lisboa, numa antologia bilingue editada pela Assírio & Alvim em 1989 e que se chama, muito apropriadamente, Nocturnos.


(Texto publicado no último número do suplemento 6a do Diário de Notícias)

20.11.06

O trampolim humano



There is a girl in New York City
Who calls herself the human trampoline
And sometimes when I’m falling, flying
Or tumbling in turmoil I say
Oh, so this is what she means


Paul Simon

A «explicação»

A «explicação», mutatis mutandis, é a mesma que Cecilia (Hanna R. Hall) dá ao médico em As Virgens Suicidas: «Obviously, doctor, you've never been a 13-year-old girl».

Home is not so sad

A casa é muito (mas muito) menos triste que o mundo.

Aquele vaso

Home is so sad. It stays as it was left,
Shaped to the comfort of the last to go
As if to win them back. Instead, bereft
Of anyone to please, it withers so,
Having no heart to put aside the theft

And turn again to what it started as,
A joyous shot at how things ought to be,
Long fallen wide. You can see how it was:
Look at the pictures and the cutlery.
The music in the piano stool. That vase.


«Home is so sad» (Philip Larkin)

Comunicação

Comunico através do meu blogue com pessoas que nunca lêem o meu blogue.

Actos sexuais

Ela mandou-me um sms que dizia: «não te esqueças de que tenho provas de que estiveste envolvido em actos sexuais». Parecia uma ameaça, mas era apenas um exagero.

O sétimo dia

Uma vez, a coisa não resultava de todo e eu fiquei furioso. Não comigo nem com ela. Tive uma espécie de fúria contra a sexualidade. Como se censurasse a Deus ter ficado satisfeito ao sétimo dia.

O tarado assexual

Isto é, um tarado sexual que fosse assexuado.

Pity fuck

É conhecido o conceito de «simpathy fuck». Mas eu aprovo mesmo é o conceito de «pity fuck». Acho uma coisa quase cristã.

Agostinho



Agostinho deu umas quecas, e só depois percebeu, platonicamente, que a alma estava prisioneira do corpo. Deu em génio e santo. Eu, que percebi isso desde sempre e não serei génio nem santo, estou pronto para as quecas.

A presunção

Já imaginei que algumas mulheres em concreto tenham dito hipoteticamente acerca de mim: «ele deve ser muito mau na cama». Uma presunção que é ainda pior do que ser realmente mau na cama.

Os alemães

Sou capaz de dizer o dia e a hora em que ouvi uma mulher dizer de um homem «ele é muito bom na cama». E, quando são homens que eu conheço, fico meio irritado, mesmo que não esteja de todo interessado na mulher que confessa isso. Trato os homens «muito bons na cama» como se fossem alemães: admiro a sua eficácia mas não os gramo.

Chegar a velho

A líbido retira-nos sensatez. Essa é a únca razão por que eu quero chegar a velho.

O insulto com a verdade

Tive uma namorada que era brutalmente sincera comigo. E quando digo brutalmente digo brutalmente. Isso em princípio é bom, numa pessoa que tenha mais virtudes que defeitos. Como eu tenho muito mais defeitos, a sinceridade magoava um bocado. E, no entanto, mesmo recordando com alguma amargura certos excessos verbais, noto que mais ninguém me tratou de modo tão honesto. Não que outras pessoas tenham sido desonestas comigo: mas existiu sempre, sentida ou pressentida, a elisão, a omissão, o eufemismo. E eu gosto de gente que me insulte com a verdade.

O silogismo

Com R., falava imenso de sexo. Nunca fomos para a cama. Com C., raramente falava de sexo. Nunca fomos para a cama. Que se foda o silogismo (ao menos o silogismo).

The Vaselines (2)

Gosto muito destes dois versos de uma canção dos Vaselines: «Once I had a friend called Oliver Twisted / Who took life so slow that he occasionally missed it». Não apenas porque me lembram a divertidíssima poesia do vitoriano Edward Lear (1812-1888) mas também porque me podiam perfeitamente servir como epitáfio.

The Vaselines (1)

Descobri os The Vaselines, como toda a gente, por causa das constantes referências de Kurt Cobain à banda escocesa e das três covers que ele deixou («Son of a Gun», «Molly’s Lips», «Jesus Wants Me for a Sunbeam»). Os Vaselines só gravaram 19 canções, hoje recolhidas no disco The Way of the Vaselines (1992). São todas magníficas: cândidas e adolescentes e blasfemas e ruidosas e tímidas e melodiosas e cheias (mesmo muito cheias) de alusões sexuais. «Vaselina», aliás, já é uma dica.

Metacrítico

A um mês do fim do ano, eis os dez artistas e grupos (aliás onze, porque o décimo é ex-aequo) mais votados no site Metacritic, que faz a média das críticas da imprensa anglo-saxónicas, com as respectivas pontuações (de 0 a 100).

91 Joanna Newsom
89 Bob Dylan
88 Vince Gill
88 TV On The Radio
86 The Hold Steady
86 OOIOO
86 Subtle
85 The Decemberists
85 Yo La Tengo
84 Bonnie "Prince" Billy
84 Solomon Burke

Destes 11 tenho 5, e 3 estão também na minha lista de favoritos, que publicarei daqui a umas semanas. Pelos vistos, estou mais metacrítico do que julgava.

1812-1816

Beethoven nunca se casou porque se apaixonou sempre por mulheres com um estado civil ou um estatuto social impeditivos. Desalentado, produziu muito pouco entre os anos de 1812 e 1816. Deus me livre de algum comentário. É apenas um dado biográfico.

As mulheres belas (5)

Em relação às actrizes bonitas, as pessoas muitas vezes suspeitam que elas são demasiado atraentes para terem talento ou protestam porque nunca lhes atribuem personagens complexas. É verdade que as coisas se passam assim na indústria do cinema. Acontece que eu acho, pelo contrário, que a beleza é um talento e que implica um elevado grau de complexidade.

Isso não acontece só no cinema, mas fiquemos agora pelo cinema. Há mulheres cujos olhos, gestos e movimentos são inesquecíveis, mesmo que não sejam grandes actrizes num qualquer sentido stanislavskiano do termo. E isso não sucede a todas as mulheres bonitas (há centenas de beldades inócuas ou bovinas). Existe um talento, isto é, uma qualidade, que pode ser aquilo a que chamamos «fotogenia» (que nem sempre acompanha a beleza). Além disso, se observarmos com atenção um fotograma com uma actriz bonita (exemplo: Liv Ullmann), vemos uma complexidade naquele rosto que ultrapassa os elementos físicos, embora se baseie neles. E com as mulheres feias ou vulgares isso acontece com muito menos frequência.

É por isso que as mulheres bonitas no cinema não são apenas «decorativas»: elas são luminosas, como se, projectadas no ecrã, desse ecrã se projectassem para nós espectadores.

18.11.06

As mulheres belas (4)

O filme sobre Beethoven não vale um caracol. Mas a gente não vai ao cinema só por causa dos travellings.



Na foto, a actriz alemã Diane Kruger (n. 1976). Foi bailarina, modelo, Helena de Tróia, fala Latim e parece que se divorciou este ano.

As mulheres belas (3)

Mas há um cineasta (e um grande cineasta) que raramente filma mulheres bonitas, se é que alguma vez filmou alguma: Mike Leigh. Como se trata de cinema realista (e meio socialista) as senhoras são sempre uns camafeus. Eis o que se chama um esquerdista pessimista.

As mulheres belas (2)

Um crítico americano queixava-se de que no último Ridley Scott «todas as mulheres são bonitas». Bom, mas isso é o cinema, meu amigo. A quantidade de mulheres bonitas nos filmes é muitíssimo superior à quantidade de mulheres bonitas no nosso quotidiano (excepto se alguém trabalha na Elite). É também para isso que servem os filmes, e o respeitadíssimo Antoine de Baecque esclarece tal ponto sem espinhas em La Cinéphilie: Invention d’un Regard, Histoire d’une Culture (2003). Desde os início que os homens se entusiasmavam com as mulheres belas no cinema e iam ao cinema para ver essas deusas. E mesmo os críticos mais conhecidos, por exemplo os da Nouvelle Vague, falavam quase tanto de olhos e pernas como de travellings. O cinema tem demasiadas mulheres belas? Que ideia absolutamente atroz.

17.11.06

As mulheres belas

É verdade que Proust disse que devemos deixar as mulheres belas para os homens sem imaginação. Mas também é verdade que Proust era gay.

Um fraco

Segundo Tarkovsky (em O Sacrifício) um fraco é «aquele que ama desmesuradamente».

Que ninguém repare

A dado momento, George Costanza (Seinfeld) demite-se e David Brent (The Office) é despedido. No entanto, ambos regressam no dia seguinte, à espera de que ninguém repare que eles estão de volta. Eis a linha divisória entre o cómico e o patético.

16.11.06

A arca de Noah

Quando fui ver A Lula e a Baleia, não sabia quem era Noah Baumbach. Quando saí da sala, achei que tinha tantas afinidades com aquele universo, com aquela sensibilidade específica, que aquele tipo devia ter a minha idade e gostos parecidos com os meus. Depois descobri que Noah nasceu em 1969, é filho de uma crítica do Village Voice e de um romancista, fã de Dean Wareham (Galaxie 500, Luna) e que é casado com uma das minhas actrizes fetiche, Jennifer Jason Leigh. Ou seja, no fundo somos amigos.

Artistas

A arte contemporânea é campo fértil de paródia, sobretudo na sua componente «performativa». Lembro-me de ler num jornal inglês a história de um «artista» que convidou um espectador a subir ao palco, lhe pediu para assinar um papel de «consentimento» (de quê, o papel não explicava), o amarrou e o sodomizou ali mesmo, perante a plateia incrédula. Em sua defesa, declarou depois que aquilo era um espectáculo sobre «o pós-modernismo e essas merdas».

Recentemente, em Serralves, num ciclo sobre «o corpo» (ah, «o corpo»), houve uma performance chamada «The Weight of the Breast», que se apresentava como uma «reflexão sobre a condição da mulher no palco masculinizado do rock» e que consistia em 20 mulheres em topless a tocar bateria (palavra de honra).

Eu realmente uma das coisas que mais gosto nestas «performances» e nestas «reflexões» é que puxam sempre pela javardice. Há sempre mamas e pilas e tal. É que eles são artistas mas não são parvos.

The Fall (3)

Dear pharmacist use your mind
You better stock me up for the wintertime


(Other Half, «Mr. Pharmacist», retomada pelos The Fall)

The Fall (2)

Segundo alguns críticos, das duas vezes que Mark E. Smith casou e meteu a mulher na banda (Brix e depois Elena), os The Fall tornaram-se mais melódicos e acessíveis, menos violentos e abrasivos. Mas isto dizem eles. Eu não quero propagar clichés.

The Fall (1)

Numa canção dos The Fall, do álbum Bend Sinister (1986), Mark E. Smith confessa o seu desprezo pelos ignorantes musicais que o rodeiam: «Walked, at shoulder, down the street, ridicule / They couldn't tell lou reed from doug yule».

Toda a gente já ouviu pelo menos o nome Lou Reed. Doug Yule é muito menos conhecido: foi o substituto de John Cale nos Velvet Underground do terceiro álbum em diante. Os Velvet Underground são (e isso é dogma inquestionável) a banda rock mais importante de sempre. Mas é uma perspectiva optimista imaginar que algum miúdo saiba quem foi Doug Yule ou o confunda com outra pessoa. Na melhor das hipóteses, eles confundem Brian Adams com Ryan Adams.

Mas convém acrescentar que o senhor Smith é um refinado snobe: Bend Sinister é o título de um romance de Nabokov e The Fall (La Chute) é uma novela de Camus.

Break point

Quando, há uns meses, me deu para usar linguagem de ténis, por razões específicas, escrevi um post (não publicado) sobre o «break point». O break point é um ponto que resulta numa quebra de serviço quando marcado pelo jogador que recebe. O que é estranho é que esse post tinha um sentido na altura, e ganhou outro sentido agora. A quebra de serviço já não é a mesma. Sofreu, digamos, uma quebra de sentido. E o «break point» tornou-se «breaking point».

Martelo

O Público de ontem citou um post meu que, no contexto das outras citações bloguísticas que o acompanhavam, parecia um texto sobre Santana Lopes. O Pedro Lomba já lembrou aqui como os citadores dos jornais raramente entendem contextos, ironias, ambiguidades. E depois citam mal e a gente fica com a fama da citação.

É curioso que o Público tenha feito de um post intimista um statement político. É a tese de um primo meu, que diz que eu escrevo imenso sobre política no Estado Civil. Quando eu, surpreendido, lhe pedi exemplos, ele disse primeiro que «tudo é política» (tese marxista que eu não esperava dele) e que, subtilmente, é possível interpretar conteúdos políticos em muitos posts. No fundo, foi isso que o Público fez. Se o texto pode ter leitura política, então é um texto político. O que, em última análise, significa que cada vez que escrevemos a palavra «martelo» estamos a fazer uma alusão manhosa ao PC.

14.11.06

Then shall i turn my face

Com dignidade

Estamos sempre a exigir aos futebolistas e aos actores e aos políticos uma coisa que não aplicamos o suficiente a nós mesmos: um abandono com dignidade.

Avaria técnica

Às vezes sou uma espécie de avaria técnica na emissão. Que depois prossegue, normalmente, como antes.

Black out

Uma pessoa que nunca fez ninguém feliz devia mas é estar caladinha.

Match

I think I'll print it in the personals that I'm looking for a match
Someone to light me up, someone to burn the proof of the things that I've done


Bright Eyes

A diferença

Infelizmente, a diferença não está entre as pessoas que nos querem bem e as pessoas que nos querem mal. Está entre as que nos fazem bem e aquelas que nos fazem mal.

Confidencialidade

Uma das consequências de ter amigas e amigos advogados é que estou sempre a receber mails que avisam: «A presente mensagem e quaisquer ficheiros anexos são confidenciais e enviados para exclusivo conhecimento dos destinatários. Esta mensagem pode conter informações sujeitas a sigilo profissional ou cobertas por outro dever de confidencialidade ou de segredo. E o curioso é que, muitas vezes, é o caso.

13.11.06

I Ran

Em Dans Paris (Christophe Honoré, 2006) Romain Duris, de cama, ouve um velho vinil de Kim Wilde («Cambodia») e tem um momento da chamada «euforia do deprimido» (vem nos livros). Eu tentei com os Flock of Seagulls. Não resultou.

As coisas difíceis

A dado momento, achamos que as coisas mais difíceis já foram ditas. Mas há sempre muitas coisas difíceis que ficaram por dizer. Sobretudo as que ainda não descobrimos.

A mentira

O que mais custa numa situação de mentira é quando ninguém disse nenhuma mentira.

Roma

Quando se aproximam os visigodos e os ostrogodos, os cidadãos de Roma naturalmente abandonam Roma.

O maluco que ria



Quando Syd Barrett morreu, há uns meses, tive curiosidade em ouvir o seu álbum a solo de 1970, The Madcap Laughs, que ele gravou depois de ter sido despedido dos Pink Floyd. Desembrulhei o CD, que tinha comprado mas que nunca tinha tocado, e fiquei surpreendido. The Madcap Laughs não é exactamente um álbum: são demos, às vezes mal cantadas, com conversa de estúdio e algumas melodias simples e acompanhamentos amadorísticos. As letras, embora contenham um poema de Joyce e a reveladora «Dark Globe» (em que Barrett relata a sua esquizofrenia) não fazem nenhum sentido (dois exemplos: «close our eyes to the octopus ride» ou, ainda melhor, «yum, yummy, yum, don't, yummy, yum, yom, yom»). Eu contava com um álbum chanfrado e psicadélico e deprimente. E enfim, é um bocado psicadélico (mas sobretudo pastoral) e um bocado chanfrado (mas sobretudo ingénuo). O que não é nada é deprimente. Parece um Nick Drake num dia em que tomou a medicação. Os temas andam bastante à volta de raparigas (há, no interior do disco, uma moça fotografada de rabo nu atrás de um Syd janado e despenteado) e às vezes são alegres e um bocadinho melancólicos como os dos Kinks. A chave destas gravações está porventura em «No Man’s Land», na qual que não se percebe quase nada dos últimos versos, murmurados por Barrett, que achou muito bem que a canção ficasse assim mesmo. Eu aliás confesso que comprei o disco mais por razões de conhecimento histórico do que de interesse musical. E, naturalmente, porque tenho grande empatia com malucos que riem.

Os amigos

Um «ano instrutivo» escrevi. Um ano instrutivo sobre as amizades, como ficou dito, primeiro numa vaga de desilusão e amargura, depois com uma descoberta progressiva das pequenas nuances, dos pequenos gestos, dos que estão mais confortáveis ou desconfortáveis com a intimidade, dos que revelam quase secretamente a empatia, dos que são secos sendo calorosos (e o inverso), dos que são ausentes por não saberem fazer melhor, dos inesperados, dos distantes que nos são próximos e próximos que se tornaram distantes, dos que dizem apenas que estão onde sempre estiveram e que eu sei disso e que sempre que precise. E eu sei disso. E isso tem sido «instrutivo» de um modo quase comovente.

Impessoal e transmissível

Quanto aos posts sobre Chico Buarque no Coliseu, sobre O Esplendor na Relva na Gulbenkian e sobre Keith Jarrett no CCB, posts com espaço reservado no blogue há um tempo, pois bem, não pude, não quis, não fui. Felizmente os bilhetes são impessoais e transmissíveis.

Emily Blunt



Vi três filmes com a actriz inglesa Emily Blunt (My Summer of Love, The Devil Wears Prada e Irrisistible) todos eles entre o mau e o fracote. Mas é impossível não reparmos nela, talvez pelos olhos tão depressa líquidos como assustados, talvez pelo movimento do lábio inferior quando ela fala com pronúncias diferentes ou com sentimentos diferentes. Nasceu em 1983, vive em Londres e toca violoncelo.

«O Perfume»

Nunca li O Perfume (1985), de Patrick Suskind, porque sempre o ouvi altamente elogiado por gente que lê pouquíssimo ou só lê merdices. E confesso que suspeito bastante de romances que vendem 15 milhões de exemplares. Acredito que o livro seja potável (sei que houve críticas decentes de críticos respeitáveis, que Kubrick e Scorsese quiseram adaptar a coisa, que Cobain escreveu «Scentless Aprentice» baseado na história). A julgar pela versão fílmica, que vi agora, O Perfume parece um romance histórico de matriz gótica e propensão para a fábula. Detectei dois temas relevantes: uma análise detalhada do mais indescritível dos cinco sentidos (que talvez resulte no livro, mas na tela é apenas representado por 27 narizes) e uma meditação sobre a insensibilidade ética do esteta radical. O filme é um europudim grotesco, previsível e preguiçoso, cheio de dinheiro mas sem nenhum talento, com um herói viciado em virgens cheirosas («Noseferatu», chamou-lhe o escritor Peter Ackroyd) que mata para lhes guardar o cheiro, o qual tem um efeito muitíssimo poderoso sobre as multidões. Munido dessa essência, uma espécie de «killing joke» da harmonia sexual, a narrativa descamba numa instalação de Spencer Tunick, com toda a gente descascada a fornicar numa praça onde estava instalado o cadafalso do assassino. Resumindo: gosto pelo «tabu» e pozinhos «new age». Fiquei com a certeza de que nunca lerei tal romance. Nem que com que isso perca 300 oportunidades de conversa com as muitas miúdas cheirosas e tontinhas deste mundo.

A magia da solidão

Saio apenas para ir ao cinema. Um amigo, muito psicanalítico, diz-me que se compreende essa atitude, visto que se trata de um sítio escuro onde se projecta uma imitação da vida. Talvez. Mas um sítio escuro onde se projecta uma imitação da vida é a minha vida. Ir ao cinema é outra coisa: uma espécie de magia da solidão.

11.11.06

Resposta a um mail jurídico

De acordo, mas repare que o 135 diz «quem incitar outra pessoa».

Jarrell

O mais conhecido poema de guerra do grande crítico e poeta americano Randall Jarrell (1914-1965), em tradução minha:




A Morte do Artilheiro da Torre Giratória

Do sono de minha mãe aterrei no Estado
e agachei-me no seu ventre até que o meu casaco molhado congelou.
Seis milhas acima da terra, desprendido do seu sonho de vida,
acordei com a tenebrosa artilharia e com os caças de pesadelo.
Quando morri, os meus bocados foram lavados da torre com uma mangueira.

Tipologia

Na verdade, quando falamos de suicídio, esquecemos que há uma tipologia muito diversificada de suicídios:

1. suicídios efectivos: alguém que se mata voluntariamente, na posse das suas faculdades ou num momento tresloucado (Kurt Cobain)

2. suicídios homicidas: alguém se suicida obedecendo a ordens (Erwin Rommel)

3. suicídios acidentais: alguém que morre devido a uma acção potencialmente perigosa mas talvez não voluntariamente suicida, como em casos de overdose ou de mistura de álcool com comprimidos (John Belushi)

4. falsas tentativas de suicídio que resultam em suicídio efectivo: alguém que simula uma tentativa para chamar a atenção e acaba por morrer mesmo (Sylvia Plath, segundo algumas biografias)

5. mortes aparentemente acidentais mas facilmente configuráveis como suícidio: por exemplo se um depressivo em estado avançado morre atropelado (Randall Jarrell)

O penúltimo desejo

Perante o pelotão de fuzilamento, ele não se lembrou de nenhum último desejo. Só se lembrava insistentemente do penúltimo desejo.

A melhor amiga (2)

Uma heterossexualidade que é como se fosse uma forma de lesbianismo.

A melhor amiga

Um heterossexual não pode ser a melhor amiga de uma mulher.

Castrato

O castrato pode ter uma voz sedutora para alguns gostos musicais, mas convém lembrar o estimável público que ele não possui (como se diz?) testículos.

Joaninha

Como se fosse uma joaninha. Bichinho simpático, com que se brinca ou que se esmaga com a mesma naturalidade infantil.

Justiça poética

Clamorosamente derrotado pela «natureza humana» que tantas vezes invoco.

10.11.06

Fantasmas

Se eu fizer sombras na parede com as mãos, não podemos chamar a essas sombras fantasmas.

The right to bear arms

Uma pessoa só devia ter licença de porte e uso de arma se se comprometesse que a ia utilizar apenas em caso de suicídio.

Os jardins divididos

Na adolescência tive, como quase todos os miúdos, algum fascínio por Jim Morrison. Não tanto pelo seu magnetismo animal ou pela música (sou meio alérgico ao Hammond) mas pelas letras lisérgicas como eu só conhecia em Lautréamont. Um dos pouquíssimos poemas que sei de cor é An American Prayer, que saiu numa plaquete em edição de autor em 1970 e foi depois gravado e editado postumamente num pavoroso disco com acompanhamento musical. Desse poema, nunca esqueço esta passagem, uma das mais importantes da minha vida, e que aqui traduzo:

Estão à espera de nos conduzirem
aos jardins divididos.
Sabem quão pálida, lasciva e entusiasmante
é a morte quando chega em hora estranha,
sem plano nem anúncio,
como uma convidada assustadora e muito amistosa
que levassemos para a cama?
A morte faz de nós todos anjos
e dá-nos asas onde tínhamos ombros,
suaves como as garras de um corvo.

Cadeira

O mais engraçado é que enquanto me atam as correias na cadeira eléctrica, eu só tenho palavras generosas para a decisão dos sábios jurados.

Erro sobre o sujeito

Às vezes o erro sobre o sujeito é um erro sobre o sexo do sujeito. E não é preciso ser no Crying Game.

Coitado

Num instante, passou do coito ao coitado.

«Foder»,

disse o apotecário em linguagem demótica.

55

Se eu mudasse em mim cinquenta coisas, ainda faltavam cinco.

Gráfico

Do cuidado que se tem com um amante ao cuidado que se tem com um doente.

Estores

Estou farto da mesa de cabeceira, farto das almofadas, farto das luzes de cima e da luz do candeeiro pequeno, farto do tecto e das paredes, farto da porta e do cabide, farto do vidro da varanda e sobretudo farto dos estores. Já não aguento mais os estupores dos estores. Estou com os estores como Oscar Wilde com o papel de parede de mau gosto no seu leito de morte num hotel rançoso: «Either that wallpaper goes, or I do».

Cama

Tal como se comentava há uns meses nalgumas casas de apostas, tenho tido cama como nunca.

8.11.06

Not ready yet



There's a world outside
And I know cause I've heard talk
In my sweetest dream
I would go out for a walk

But I don't think I'm ready yet
I'm not feeling up to it now
Just not that steady yet
And I dont need you telling me how

There's some happiness
And my stone face cracks again
Maybe sometime sooner or later

But I dont think I'm ready yet
I'm not feeling up to it now
Just not that steady yet
And I dont need you telling me how

So if I leave my room
Don't you tell me to lighten up
Maybe sometime sooner or later

But I don't think Im ready yet
I'm not feeling up to it now
Just not that steady yet
And I don't need you telling me how


(Eels, álbum Beautiful Freak (1996), numa actuação ao vivo em Viena, 2006)

1.11.06

Uma espécie de felicidade

Há uma espécie de felicidade no momento de adormecer.

«To sleep»

Then save me, or the passed day will shine
Upon my pillow, breeding many woes, -
Save me from curious conscience, that still lords
Its strength for darkness, bun-owing like a mole;
Turn the key deftly in the oiled wards,
And seal the hushed casket of my soul.

(eu sei que parece Neil Hannon, mas é Keats)

«Motorway to Damascus»

Nightfall on the motorway to Damascus
The heavenly angel looked at me
And said well, what's it gonna be?
The long haul, or the shorter way to Damascus?
Choose with care and you will find that one day there will come a time
When the silhouetted ruins of the crumbling cooling towers
Are but ivy-clad reminders of a long-forgotten power
Must the monkeys leave Gibraltar's rock and ravens flee the tower
Before we look and see ourselves for what we really are?

(eu sei que parece Yeats, mas é Neil Hannon)

O apóstata

Uso muito uma palavra de código: «instrutivo». Uma coisa que corre mal foi uma coisa «instrutiva». É aquela ideia conjectural de que «aprendemos» com aquilo que nos acontece. Assim, 2003 foi um ano «instrutivo» nalgumas matérias (importantes) e 2005 foi instrutivo noutras (menos importantes) [não me lembro de nada especialmente «instrutivo» em 2004]. Mas não esperava que 2006 fosse um ano tão «instrutivo» como tem sido. Mais: não esperava que fosse uma tal revelação (revelação de coisas sabidas, de coisas desconhecidas, de coisas escondidas, de coisas sublimadas). Como se no caminho para Damasco a queda do cavalo tivesse tornado um crente num ateu (em vez do contrário). Já não é uma reacção intelectual, um automatismo de defesa, mas uma espécie de conversão, aqui vista pelo lado negativo. Este é o ano em que me tornei um apóstata.

A razão

Tinhas razão, toda a razão, razão antes de tempo, razão tantos anos antes. Viste numa fraqueza um desastre, escolheste os adjectivos que se iam tornar substantivos, e disseste (eu ainda tão novo) que a vida não estava do meu lado. E foi então que me apresentaste a morte, apenas para que eu falasse com alguém enquanto tu viravas costas.

Reply to all

A empatia é tecnicamente impossível. A compaixão é um ritual forçado. A piedade é um nojo. No meio disso, o que tem mais dignidade ainda é o abandono.