31.10.06

Day after day



day after day
I get angry
and I will say


(«Add it Up», dos Violent Femmes, numa actuação de 1984)

Um doido que não oferece perigo

«(...) como se tratam as pessoas que se conhecem há muito: como um doido que não oferece perigo» (Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite, pág. 246).

Arte poética

É costume usarmos o termo genérico «harakiri» para referir uma prática samurai chamada «seppuku». O «seppuku» não é apenas o suicídio com uma espada, mas um ritual mais exigente e doloroso: o suicida faz um corte no abdómen, introduzindo a extremidade da espada dentro de si, e depois executa movimentos laterais que rasgam os órgãos internos, da esquerda para a direita. O «seppuku» é um suicídio antecedido de mutilação e de sofrimento atroz, mas também um acto de inominável coragem física. Era assim que eu gostava de escrever.

Empatia (2)

Sou um caso extremo de empatia masoquista. Sou como um judeu que gostasse de nazis.

Ele disse (2)

«Ninguém fode um cromossoma».

Ele disse (1)

«O teu problema é que gostas de mulheres heterossexuais».

Farmacopeia (2)

Tomar um medicamento já tendo os efeitos secundários.

Farmacopeia (1)

Tomar um medicamento por causa dos efeitos secundários.

O embuste

«O embuste era uma forma de evitar atritos e as pessoas coabitavam sem repugnância na regra da habituação. Julgavam comunicar e o que faziam era habituar-se» (Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite, pág. 117).

Gosto muito de o ver trabalhar

O pescoço

Konrad Lorenz conta que alguns animais, quando perdem uma luta, executam um ritual de submissão: expõem o pescoço ao vencedor, para que ele os possa matar de vez. Mas o outro não os mata, pois apenas pretendia a submissão do vencido.

A quem é que eu dou agora o meu pescoço? A mim mesmo?

Ou seja (3)

Peço desculpa às pessoas que me pediram desculpa.

Ou seja (2)

Mais um quadradinho (depois da profissão) que eu não sei preencher.

Ou seja

As mulheres têm sempre razão.

Um grego

«Não basta você dizer que é grego, que nasceu na Grécia, que fala grego, que os seus familiares vivem em Atenas, que tem passaporte helénico. Um grego, meu caro, é alguém que se porta como um grego. E pelo que você me descreve, você não se porta de todo como um grego. E se não se porta como um grego, não é um grego».

30.10.06

Empatia

29.10.06

Acabou

Acabou
Já não vou mais atrás de ti
vou deitar-me meia-hora
Acabou
não vou ficar na tua memória
não vou esfregar a minha cara na tua memória
vou bocejar
vou-me espreguiçar
vou espetar uma agulha de crochê
pelo nariz acima
e arrancar o cérebro
Não te quero amar
a vida inteira
quero que a tua pele
caia da minha pele
quero que a minha garra
deixe a tua garra
não quero viver
com a língua de fora
e outra canção nojenta
em vez
do meu taco de basebol
Acabou
agora vou dormir minha querida
Não tentes impedir-me
vou dormir
terei um rosto macio
e baba na boca
estarei a dormir
quer me ames ou não me ames
Acabou
A Nova Ordem Mundial
das rugas e do mau hálito
Já nada vai ser
como era antes
quando te comia
com os meus olhos fechados
esperando que não te levantasses
e fosses embora
Agora vai ser uma coisa diferente

uma coisa pior
uma coisa mais estúpida
uma coisa como esta
mas ainda mais pequena



Leonard Cohen, Book of Longing (2006)
(trad. PM)

Amor líquido

Há semanas, apareceu uma reedição portuguesa dos Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977), de Roland Barthes, belissima reivindicação romântica das linguagens do amor, contra o cinismo e a psicanálise. Agora, saiu a tradução do muito mais recente (e mais pessimista) Liquid Love, do sociólogo de origem polaca Zygmunt Bauman (n. 1925). Amor Líquido, de 2003, é um ensaio (como diz o subtítulo) Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Fez-me especial impressão reler (conhecia a edição inglesa) uma passagem do primeiro capítulo, que se chama «Apaixonar-se e desapaixonar-se».

Bauman fala da escolha amorosa («amorosa» no sentido lato) como uma forma de parentesco voluntário; mas não esconde que há uma sombra nessa escolha, que é a nostalgia do momento inicial, as condições adversas da sociedade em que vivemos, e a impossibilidade trágica que recai sobre as emoções estáveis.

Cito: «A afinidade nasce da escolha e nunca se corta esse cordão umbilical, e a menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas acções continuem a ser empreendidas para a confirmar, a afinidade vai definhando, murchando e deteriorando-se até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e uma vigilância sem descanso. Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva supera toda a capacidade e vontade de negociação».

A «luta diária» e a «vigilância sem descanso» talvez não sejam conceitos muito sociológicos. Mas são conceitos muito adequados. Que às vezes nos dominam. E que outras vezes, tristemente, nos abandonam.

A hora mudou

Chego a casa tarde e o computador mudou sozinho para a hora de inverno. Sempre tive algumas perplexidades com a mudança da hora, mas ainda mais perplexo fico com isto de as máquinas alterarem o relógio automaticamente (mesmo que saiba que é uma operação básica).

Eu, por outro lado, quando reparo que a hora mudou nunca sei como se faz. Não sei como se muda. Fico na hora antiga. Não aceito a nova. Triste e patético, e deixado para trás no avançar do tempo.

27.10.06

Hope



A lânguida Hope Sandoval (dos extintos Mazzy Star) faz-me sempre lembrar o aforismo mais inesperado (ou não?) do cineasta católico Robert Bresson: «La force éjaculatrice de l'oeil».

Ouvido no café (3)

«Não és pragmático porque não tens necessidade».

Ouvido no café (2)

«Ele tem a crítica social apenas na língua».

Ouvido no café (1)

«(...) por isso é que a Madre Teresa era a Madre Teresa».

26.10.06

Na cova dos leões (2)

Então o rei mandou trazer Daniel e lançá-lo na cova dos leões. E o rei disse a Daniel: «O teu Deus, a quem tu adoras, vai livrar-te».
(Daniel, 6, 17)



Daniel in the Lion's Den (1872), de Briton Riviere

Na cova dos leões (1)

É um dos melhores começos de canção que conheço: «What holds your hope together / make sure it's strong enough» (The Sound, «Winning», do magnífico álbum From the Lion’s Mouth , 1981).

No meio dos teclados obsessivos, do baixo soturno e das guitarras plangentes, Adrian Borland canta o primeiro verso e não diz «a esperança» mas «aquilo que sustenta a esperança» (aquilo que a ata, como se a esperança fosse um feixe de coisas miúdas). O verso parece interrrogativo, uma interpelação à nossa segurança, às certezas sobre o nosso estado, mas depois não é exactamente uma interrogação, vem o segundo verso e já é um aviso com quatro quintos de decepção e um quinto de cinismo (de quem já sofreu, de quem já viu o feixe e desfazer-se e com ele a esperança espalhada pelo chão).

E depois vem a palavra fatal do refrão («winning»), que alguns entendem como um triunfo da vontade. Mas notem o tom com que a palavra é cantada e repetida, tanto no original como nas versões ao vivo: sem a convicção adoentada dos voluntaristas e com o sarcasmo violento dos vencidos.

Como se a raiva da derrota fosse a única vitória dos que nunca vencem.

25.10.06

For your consideration



No one captures girlhood on film better than Coppola. (…) By tossing in American slang, rock music (New Order and Bow Wow Wow) and eclectic acting styles, she's crashing through the barriers of centuries and stuffy Hollywood biopics to give us a palpable sense of Marie moving through the temptations of flesh and spirit before history boxed her in. With lyrical intelligence and scrappy wit, Coppola creates a luscious world to get lost in. It's a pleasure. (Peter Travers, Rolling Stone)

(no vídeo: uma das canções usadas em Marie Antoinette, «Ceremony», dos New Order, aqui numa versão ao vivo dos Galaxie 500)
Quarta-feira, dia 25 de Outubro, pela 18:30 h, no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal, o É A CULTURA ESTÚPIDO! debate O Fim dos Jornais?

Vicente Jorge Silva e Gustavo Cardoso são os convidados e discutem com Pedro Mexia e Daniel Oliveira a situação presente da imprensa portuguesa, moderados por Nuno Artur Silva.

Anabela Mota Ribeiro e José Mário Silva apresentam a nova rubrica Relatório do Mês, onde fazem o balanço do que andam a ler, ver e ouvir e do que não andam a ler, ver e ouvir.

Berkeley (2)



Na lista dos meus heróis intelectuais está George Berkeley (1685–1753), o filósofo irlandês que levou o empirismo ao seu extremo, desembocando no chamado idealismo subjectivo.

O famoso dito «Esse est percepi» («Ser é ser percebido», no sentido de «percepcionado»), que partiu dos seus estudos ópticos, postula que não conhecemos os objectos (ele não gostava do termo «matéria») mas temos apenas sensações e ideias sobre os objectos. O mundo existe na nossa mente (que aliás completa muitas lacunas das percepções) mas não há nenhuma garantia da existência dos objectos tal como os vemos ou sentimos.

Acho fascinante que Berkeley tenha sido um «mestre da suspeita» alguns séculos antes de eles dominarem o pensamento europeu. Mas, ponto importante, um mestre da suspeita que não era (como seriam todos os outros) um materialista. Bem pelo contrário, ele foi um imaterialista radical: um idealista. E um idealista radical: um idealista subjectivo, que sabe que cada experiência é apenas uma experiência pessoal.

Não preciso de explicar por que razão é um dos meus heróis.

Berkeley

Ele tinha lido num dicionário de citações a frase de Berkeley «Ser é ser percebido». Não percebeu a frase, e achou que «ser percebido» significava «ser compreendido» [quando significa «ser percepcionado»]. Pensou nisso um bocado. E, como se julgava incompreendido por toda a gente, concluiu que tinha deixado de existir. E saltou da janela.

Umas cenas

Ontem à tarde recebi um sms que dizia «Liga-me agora, ouvi umas cenas horríveis sobre ti». Não conhecia o número e acho que não me dou com ninguém que diga «cenas» no sentido de «coisas». Mas de vez em quando há gente que diz (e gente que ouve) umas «cenas horríveis» sobre mim. Fiquei duplamente curioso com o remetente e com as «cenas». Liguei para o número. Tocou, tocou. Quando finalmente atenderam, uma voz feminina, meio encavacada, pediu desculpa. Tinha sido engano.

Se a mensagem tivesse sido «ouvi umas cenas óptimas sobre ti» e o número fosse desconhecido, eu nem tinha ligado de volta. Nesse caso, tinha percebido logo que era engano.

24.10.06

O tom e o equívoco

É verdade que nunca comunicámos tanto, porque nunca tivemos tantos meios tecnológicos de comunicação à distância. E no entanto, nalguns deles (as mensagens de telemóvel, os programas de conversação pela Net) perdemos um elemento essencial da comunicação, o tom, coisa que tentamos superar com umas sinalefas de gosto duvidoso. Sem tom (sem mágoa ou ironia ou irritação) ficamos dependentes das palavras em si mesmas. Mas as palavras sem tom, pelo menos na linguagem comum, causam equívocos. O aumento da comunicação é assim um aumento (astronómico) dos equívocos entre as pessoas.

23.10.06

Marie Antoinette

É o meu segundo combate cinéfilo do ano. Depois de atacar a pífia ingenuidade «fantástica» de Shyamalan, defendo com gosto a frivolidade histórica de Sofia Coppola. No próximo sábado, na revista NS, num texto que começa assim:

«Marie Antoinette» não é sobre Maria Antonieta. É claro que o argumento se baseia numa biografia (escrita por Antonia Fraser) da esposa de Luís XVI, que o palácio de Versalhes que vemos é mesmo o palácio de Versalhes, é claro que existe uma «reconstituição histórica» vistosa, com cenas exteriores e interiores deslumbrantes, vestidos sumptuosos, móveis vetustos, coreografias impecáveis e uma vaga sinopse das questões políticas da época. Mas não se espere exactidão factual num filme que toma a sua heroína como um caso e não como um exemplo.

Wimbledon

Em Abril de 1999, Adrian Borland gravava um disco a solo, com o título ominoso Harmony & Destruction. As sessões estavam quase terminadas. Na sexta, 23 de Abril, teve uma crise depressiva. No entanto, entusiasmado com o andamento do álbum, prometeu descansar a cabeça e retomar o trabalho na segunda seguinte. No domingo, esteve em casa da sua ex-namorada. Na madrugada de segunda, dia 26, foi encontrado pela polícia, confuso e ouvindo vozes, e levado para casa dos pais, que tentaram que ele tivesse acompanhamento médico. Ele recusou e saiu. Nessa mesma manhã, na estação de metro de Wimbledon, Adrian saltou à passagem da carruagem. Tinha 41 anos e uma doença mental com mais de uma década. Deixou 20 e tantos álbuns. É dos esquecidos mais imerecidos da geração de oitenta.

(os discos dos The Sound tem sido reeditados pela Renascent)

22.10.06

And boy, does he let us know



Nas notas ao disco The BBC Recordings (2004), colectânea de sessões e concertos dos The Sound gravados nos anos 80, escreve Mike Dudley (baterista): «Adrian [Borland, o vocalista] is not a happy man in 1985 and boy, does he let us know all about it».

Aviso sobre o amor

Encontro esta frase do teólogo dominicano Herbert Mc Cabe: «If you don't love, you're dead; if you love too much, they'll kill you». Não é apenas um aviso sobre o cristianismo: é um aviso sobre o amor.

O que chove

Em Experience, Martin Amis diz que é preciso reagirmos ao desgosto («grief») como reagimos à chuva: baixamos a cabeça e seguimos em frente.

Mas isso às vezes é impossível. Já viram o que chove hoje?

O lobo

A fábula de Esopo conta que o rapaz gritou «lobo» em falso, várias vezes, e que quando o lobo veio mesmo já ninguém acreditou.

Mas podemos conceber uma fábula alternativa: o rapaz viu mesmo o lobo, de todas as vezes, e não gritou nunca, porque temeu que os outros não o tivessem visto e não acreditassem nele.

E depois o lobo veio e comeu o rapaz. (Nesta parte, a fábula é igual).

21.10.06

Sexta à noite

Numa cena do filme Singles (Cameron Crowe, 1992), Bridget Fonda elogia o seu cirurgião plástico (Bill Pullman), que está sem namorada. Ela enumera os méritos dele: é cirurgião («many babes are into that»), tem uns olhos bonitos e «sobrancelhas confiáveis». Mas ele responde com um argumento inatacável: «See, I don’t know how to have fun».

Boletim

São devidos os mais vivos agradecimentos ao senhor Adrian Borland (que aliás se matou).

19.10.06

Nada além da verdade

A história dos pobres

Na última colectânea de contos de Raymond Carver, Elephant (1988), há uma história espectral chamada «Blackbird Pie» sobre uma mulher que deixa o marido de um momento para o outro, depois de escrever uma carta em que explica que o casamento acabou. O marido não aceita, não compreende, não consegue viver com isso. Até que, obcecado com a História, chega, no último parágrafo do texto, a esta espantosa consciência da sua condição: It could be said (...) that to take a wife is to take a history. And if that’s so, then I understand that I’m outside history now (…). Or you could say that my history has left me. Or that I’m having to go on without history. Or that history will now have to do without me - unless my wife writes more letters, or tells a friend who keeps a diary, say. Then, years later, someone can look back on this time, interpret it according to the record, its scraps and tirades, its silences and innuendoes. That’s when it dawns on me that autobiography is the poor man’s history. And that I am saying goodbye to history. Goodbye, my darling.

18.10.06

Checklist

As características dos sociopatas englobam, principalmente, o desprezo pelas obrigações sociais e a falta de consideração com os sentimentos dos outros. Eles possuem um egocentrismo exageradamente patológico, emoções superficiais, teatrais e falsas, pobre ou nenhum controle da impulsividade, baixa tolerância para frustração, baixo limiar para descarga de agressão, irresponsabilidade, falta de empatia com outros seres humanos, ausência de sentimentos de remorso e de culpa em relação ao seu comportamento. (Wikipedia)

O seu resultado: 8 em 10. Não se mexa. Os nossos agentes vão a caminho.

A mão



Oh Mom, that man he ripped out his lining
He tore out a piece of his body
To show us his «clean quilted heart»


(Suzanne Vega, «Tired of Sleeping», álbum Days of Open Hand, 1990)

Comprar pelo título (2)



Lloyd Cole, Antidepressant

Como a nós mesmos

Que significa dizer que entre homem e mulher pode haver algo mais importante que o amor? Significa que é possível ver outra pessoa como cada um se vê a si mesmo: consentir nela todos os gestos e actos que nos permitimos a nós, sentirmo-nos contentes por que os faça como nós nos sentimos contentes por os fazermos, não nos sentirmos frustrados pelo que ela possa fazer com alguém como não nos sentimos nós próprios frustrados pelo que fazemos com outrem – isto quer dizer dizer amar este nosso próximo como a nós mesmos. Este amor chama-se caridade. Mas se a outra pessoa desaparece? Poderemos dizer que nos amamos a nós próprios uma vez que desaparecemos? Seria necessário crer que ninguém jamais desaparece.

(Cesare Pavese, O Ofício de Viver (1952), ed. port. Relógio d’Água, trad. Alfredo Amorim, pág. 293)

15.10.06

Comprar pelo título

Thomas Bernhard

Leio o livro de conversas com Thomas Bernhard organizado pelo jornalista Kurt Hofmann. Sempre achei Bernhard um escritor admirável, mas nunca foi um dos meus autores. Há nele um lado infrequentável que me afasta. Em momentos como este, no entanto, consigo identificar-me com a sua trilogia timidez, solidão & misantropia (embora me incomodem imenso a misoginia e a arrogância). Há sobretudo uma ideia que encontro nestas entrevistas e que é exactamente o meu ideal de felicidade nos dias maus: que me deixem em paz. É a coisa mais desejável, a maior benção: que nos deixem em paz, que não nos chateiem, que nos ignorem, que não dêem pela nossa existência. Em Outubro de 2006, com grande tristeza minha, leio um livro de entrevistas de Thomas Bernhard e concordo com imensa coisa.


Thomas Bernhard, escritor austríaco, 1931-1989

Amizade

Uma embarcação suficientemente grande para transportar duas pessoas quando o tempo está bom, mas apenas uma durante a tempestade (Ambrose Bierce).

O merecimento

Não tem sentido discutir se alguém tem que o merece, ou menos ou mais do que merece. Ninguém merece nada. As coisas acontecem ou não acontecem, deste modo ou daquele, mas não há nenhuma justiça nisso. O que existe é o acaso. Embora o acaso não aconteça por acaso.

O limbo

A Igreja Católica decidiu acabar definitivamente com o conceito de «limbo» (que aliás nunca foi oficialmente reconhecido). O limbo seria uma espécie de correcção à lógica absolutista de retribuição que é a salvação (o céu), a condenação (o inferno) ou a salvação depois de expiação (o purgatório).

Dante, na Divina Comédia, tinha posto no limbo os homens sábios e justos da Antiguidade. Alguns teólogos, ao longo dos séculos, teorizaram o limbo sobretudo para as crianças não baptizadas. Gente que não merecia uma coisa nem outra, gente fundamentalmente salvável mas sem a graça da salvação.

Tenho pena que o limbo tenha acabado. O limbo era uma imagem muito adequada às vidas de muitos de nós. Aqueles que têm uma existência nem paradisíaca nem infernal e que são demasiado pessimistas para acreditar que a expiação é uma salvação a prazo.

O limbo é um sítio asséptico, calafetado, minimalista. Não há cenas tenebrosas de fogo e caldeirões e tenazes, não há o esplendor e a glória, não há a esperança ao fundo do túnel.

Há uma eternidade pequenina, gelada, um sofrimento calado, as sombras das imagens e nunca mais os seus corpos.

Fake plastic trees

Tudo me parece feito em plástico. Como aquela mulher da canção que com um regador de plástico rega as suas plantas de plástico metidas em terra de plástico que comprou a um homem de plástico numa cidade cheia de plantas de plástico. Ou então sinto que sou o homem com quem ela vive « (…) a broken man / A cracked polystyrene man / Who just crumbles and burns».

is OK

Self-hatred is OK. I have self-hatred too. It's OK. What's bad is if you don't know how to get out of it, don't know how to manage it. Self-hatred is, in fact, a good thing if you can clearly see the mechanism of it, because it helps you to understand others (Orhan Pamuk, o Nobel deste ano).

O erro sobre o objecto

Há uma diferença essencial entre o fim do amor e o fim de uma amizade. Nas relações amorosas podemos sempre alegar que o suposto «amor» foi um equívoco. Mas é muito mais difícil sermos amigos de alguém durante anos e um dia concluirmos que aquilo nunca foi uma amizade.

No amor, o erro sobre o objecto é um álibi para o desgosto. Na amizade, o erro sobre o objecto é apenas desgostante.

Titanic (2)

Uma coisa não mudou, dos catorze anos para os trinta e três: eu não tinha nem tenho acesso aos botes de salvamento.

E isso não se devia nem deve ao romantismo de me afundar com o navio, como todo o capitão decente e orgulhoso.

Eu simplesmente não podia nem posso aplicar a mim mesmo um critério diferente daquele que aplico aos outros.

Titanic (1)

No início da adolescência, num exercício de misantropia precoce, dizia que se o Titanic se afundasse e eu fosse o capitão, só umas vinte pessoas (aquelas de quem eu gostasse mesmo) tinham acesso aos botes de salvamento. Houve alturas em que me percebi que isso era uma tontice, e que entrava bastante mais gente. Mas agora creio que chegará a altura em que entram apenas os remos.

A lista do telemóvel

50 por cento das pessoas estão lá por razões profissionais (quer contactemos todos os dias ou uma vez em cada semestre).

30 por cento são amigos (achava eu) ou conhecidos com quem almoço de vez em quando.

10 por cento são da família (tirando os meus pais, uma categoria bastante económica em termos telefónicos).

5 por cento estão listados para eu não atender quando me ligam (chatos e meninocas).

5 por cento das pessoas não sei por que estão na lista (ou então não sei por que não as apago da lista).

A mudança de luz

Extraordinária esta mudança de luz. E como mudando a luz vejo que mudaram os rostos. E como eu estou cansado desta luz e das suas mudanças.

Não quero mais mudanças de luz: quero uma outra luz. Ou luz nenhuma.

Demografia

Claro que há «muitas mulheres no mundo». Mas isso é um comentário estritamente sexual.

14.10.06

Eis os factos

Let’s do facts. Here are the facts. Your friend here fucks you, right? Your friend’s friend knows he fucks you, so he comes to your friend. And he tells your friend a story, which your friend repeats to you because he’s fucking you. You are rightly incensed by this story, so you bring your friend who is fucking you to me, so that he can tell it all over again, which is what your friend’s friend reckoned would happen all along. We call that disinformation.

Do novo romance de John le Carré, The Mission Song

Edward Norton

Edward Norton (n. 1969) é o maior actor americano da nova geração. Com um aspecto comum, pálido e algo franzino, ele vai da inocência amável ao ódio obstinado com uma facilidade impressionante. Muitas vezes não precisa de dizer nada: basta a raiva na testa franzida, a intensidade dos olhos semicerrados, a tristeza na boca fechada. E uma espécie de opacidade, que ele apenas interrompe ocasionalmente e sem espalhafato. E uma inteligência que se confunde com elegância.

Ossos

Os ossos são sólidos? Isso é esquecer todas as coisas que acontecem aos ossos. E não me refiro às simples fracturas recuperáveis. Penso nas doenças reumáticas, como a artrose e a osteoporose. E no cancro ósseo.

Não me venham então com essa conversa das amizades «sólidas como os ossos». Quando uma doença dessas se agrava, os ossos são tão frágeis como cabelos.

Humanidade (emenda)

Escrevi «opiniões» mas escrevi mal. As opiniões mudam, e de todo o modo não são assim tão importantes. Onde está «opiniões», que se leia «sentimento do mundo».

Humanidade

A verdade é que uma pessoa com opiniões muito minoritárias não pode ter grande amor à Humanidade.

13.10.06

Direito de tendência



Carl Theodor Dreyer (1889-1968), efabulador genial e metafísico subtil.

Mumbo jumbo

Três notas sobre M. Night Shyamalan, seguidas de uma citação:

1) Dos seus sete filmes, vi cinco. Um de que gostei bastante (Unbreakable), outro que achei interessante (The Sixth Sense) e três que detestei (Signs, The Village, Lady in the Water).

2) Alguns entusiastas de Shyamalan estão entre os críticos e cinéfilos que mais respeito, e naturalmente ouço e leio com atenção os seus argumentos.

3) Creio que começa a emergir uma fraude lamentável, que consiste em considerar Shyamalan um efabulador genial e um metafísico subtil. Pela minha parte, não vejo mais que um ingénuo simpático que quer fazer passar a sua ingenuidade por sofisticação.

Algumas objecções pertinentes ao cinema de Shyamalan estão neste artigo de Michael Atkinson no Village Voice (já citado pelo Luís), texto que aqui reproduzo parcialmente:

It would be a mighty sweet thing to see M. Night Shyamalan as the great redemptive storyteller he clearly thinks he is (...) In a way Shyamalan yearns to be modern movies' W. Somerset Maugham or even Stephen King, a compulsive story-lover dismissive of both postmodernism and technology, and what he promises is gobbled up (...)

Shyamalan certainly uses all of that and more in his constructions; it's the stories that are the problem. That is to say, nothing will prepare you (...) for the rampant foolishness of Lady in the Water. The Village, his last, distended elegy for Rod Serling, is, well, Rod Serling by comparison. It's as if on some semiconscious level, Shyamalan, who I do not doubt is a serious and self-serious pop-creative original, is calling his own success into question and daring his audience to gulp down larger and spikier clusters of manure, just to see if they will. Or he's lost his mind.

This isn't magical realism, it's pure magical thinking—Shyamalan is mystically assuming that any idea or image that pops into his skull will make a shapely tale, no matter how much cock-and-bull logic he has to invent to Gorilla Glue it together. Like all his movies from The Sixth Sense on, Lady pivots on the dawning awareness of a vast cosmic plan, foisted on grieving parents and spouses as a holy scab for their wounds. It's beginning to chafe as a formula; I suspect Shyamalan's stock is long worthless among viewers who know about loss for real. Authorial vision is a non-issue, in the face of so much repetitive, rootless mumbo jumbo.

Dilaudid



The reception's gotten fuzzy
The delicate balance has shifted
Put on your gloves and black pumps
Let's pretend the fog has lifted
Now you see me, now you don't
Now you say you love me
Pretty soon you won't
If we get our full three score and ten
We won't pass this way again
So kiss me with your mouth open
Turn the tires toward the street
And stay sweet

All the chickens come on home to roost
Plump bodies blotting out the sky
You know it breaks my heart in half, in half
When I see them trying to see them fly
'Cuz you just can't do things your body wasn't meant to
Hike up your fishnets, I know you
If we live to see the other side of this
I will remember your kiss
So do it with your mouth open
And take your foot off of the brake
For Christ's sake!



The Mountain Goats, «Dilaudid», álbum The Sunset Tree (2005) [cfr. The Smiths, «There Is a Light That Never Goes Out», álbum The Queen is Dead (1986)]

10.10.06

As coisas mudam

«Things Have Changed» é a melhor canção que conheço sobre a idade adulta. Uma canção embebida em pessimismo e misantropia, coisa mais que natural num adulto inteligente.

Entre jogos verbais, cepticismos e sarcasmos, gosto imenso da ambiguidade dos versos finais: «Mr. Jinx and Miss Lucy, they jumped in the lake / I'm not that eager to make a mistake».

Tenho a maior empatia pelos desastres do senhor Jinx («azarado»), mas também subscrevo o comentário de Dylan, que diz que não quer cometer o mesmo erro que ele. Só não sei ao certo qual é esse erro. Dylan diz «a mistake» e não «that mistake». É impossível não cometer nenhum erro, mas podemos (mais ou menos) evitar determinados erros.

Imaginemos então que o erro é o «they jumped in the lake». Ainda assim, o problema não fica resolvido. O que é «saltar para o lago»? O senhor Jinx e a menina Lucy fizeram um pacto suicida, como Kleist e a sua amante? Ou «saltar para o lago» é embarcar num sentimento que contém em si mesmo uma cláusula letal? Uma cláusula que diz: «Quem nada neste lago corre perigo de vida».

Tenho a maior empatia pelos desastres do senhor Jinx. Mas subscrevo totalmente o juízo do senhor Dylan.